Saturday, May 15, 2010

.

















Três Poemas de António Ramos Rosa



*

Não posso adiar o amor para outro século
não posso
ainda que o grito sufoque na garganta
ainda que o ódio estale e crepite e arda
sob as montanhas cinzentas
e montanhas cinzentas

Não posso adiar este braço
que é uma arma de dois gumes amor e ódio

Não posso adiar
ainda que a noite pese séculos sobre as costas
e a aurora indecisa demore
não posso adiar para outro século a minha vida
nem o meu amor
nem o meu grito de libertação

Não posso adiar o coração.


*

Este homem que pensou
com uma pedra na mão
tranformá-la num pão
tranformá-la num beijo

Este homem que parou
no meio da sua vida
e se sentiu mais leve
que a sua própria sombra

*

Sim, quero dizer sim ao inacabado
que é o princípio de tudo
e o que não é ainda,
sim ao vazio coração que ignora
e que no silêncio preserva o sim do início,
sim a algumas palavras que são nuvens
brancas e deslizam amplas
sobre um mundo pacífico,
sim aos instrumentos simples
da cozinha,
sim à liberdade do fogo
que adensa o vigor da consciência,
sim à transparência que não exalta
mas decanta o vinho da presença,
sim à paixão que é um ajuste ao cimo
de uma profunda arquitectura íntima,
sim à pupila já madura
que se inebria das sombras das figuras,
sim à solidão quando ela é branca
e desenha a matéria cristalina,
sim às folhas que oscilam e brilham
ao subtil sopro de uma brisa,
sim ao espaço da casa, à sua música
entre o sono e a lucidez, que apazigua,
sim aos exercícios pacientes
em que a claridade pousa no vagar que a pensa,
sim à ternura no centro da clareira
tremendo como uma lâmpada sem sombra,
sim a ti, tempestade que iluminas
um país de ausência,
sim a ti, quase monótona, quase nula
mas que és como o vento insubornável,
sim a ti, que és nada e atravessas tudo
e és o sangue secreto do poema.



António Ramos Rosa
Os Quatro Elementos
Edições Asa, 2004


A Música Que Toca Sem Parar:
Chico Buarque e Milton Nascimento compartilham Cálice, da autoria de Chico Buarque e Gilberto Gil.


Pai! Afasta de mim esse cálice
Pai! Afasta de mim esse cálice
Pai! Afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue...(2x)

Como beber
Dessa bebida amarga
Tragar a dor
Engolir a labuta
Mesmo calada a boca
Resta o peito
Silêncio na cidade
Não se escuta
De que me vale
Ser filho da santa
Melhor seria
Ser filho da outra
Outra realidade
Menos morta
Tanta mentira
Tanta força bruta...

Pai! Afasta de mim esse cálice
Pai! Afasta de mim esse cálice
Pai! Afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue...

Como é difícil
Acordar calado
Se na calada da noite
Eu me dano
Quero lançar
Um grito desumano
Que é uma maneira
De ser escutado
Esse silêncio todo
Me atordoa
Atordoado
Eu permaneço atento
Na arquibancada
Prá a qualquer momento
Ver emergir
O monstro da lagoa...

Pai! Afasta de mim esse cálice
Pai! Afasta de mim esse cálice
Pai! Afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue...

De muito gorda
A porca já não anda
(Cálice!)
De muito usada
A faca já não corta
Como é difícil
Pai, abrir a porta
(Cálice!)
Essa palavra
Presa na garganta
Esse pileque
Homérico no mundo
De que adianta
Ter boa vontade
Mesmo calado o peito
Resta a cuca
Dos bêbados
Do centro da cidade...

Pai! Afasta de mim esse cálice
Pai! Afasta de mim esse cálice
Pai! Afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue...

Talvez o mundo
Não seja pequeno
(Cálice!)
Nem seja a vida
Um fato consumado
(Cálice!)
Quero inventar
O meu próprio pecado
(Cálice!)
Quero morrer
Do meu próprio veneno
(Pai! Cálice!)
Quero perder de vez
Tua cabeça
(Cálice!)
Minha cabeça
Perder teu juízo
(Cálice!)
Quero cheirar fumaça
De óleo diesel
(Cálice!)
Me embriagar
Até que alguém me esqueça
(Cálice!)

30 comments:

M.C.L.M said...

"sim a ti, tempestade que iluminas
um país de ausência..."

Poema belíssimo, e a música idem!

abraços...

Unknown said...

Esses caras como o Ramos Rosa são avassaladores. Eu leio com medo de sair todo arranhado. Sobre a canção que ilustra, o Cálice, conta a lenda que Chico tinha a música a pronta e mostrou ao Gil, que acrescentou simplesmente dois versinhos Pai, afasta de mim esse cálice/ de vinho tinto de sangue, contribuição mínima não é. Abraço do Maradona de Amaralina ao Coalhada do Beco do Onça.

Tania regina Contreiras said...

Gosto de buscar vestígios biográficos na obra do artista. É inevitável, usamos palavras que estiveram sempre por perto de nós, nos rondando, ao longo da vida. Acho que com o António Ramos Rosa não é diferente. Seu estilo me agrada. Aprendi com ele a falar: "Ah, te apanhei com seu olho lírico!" Do Funcionário Cansado. Ele, por associação de lembranças (lembro-me lendo-o em dias de férias perto do mar), me lembra o barulhinho das ondas quebrando nas pedras.

No mais, "quero perder de vez tua cabeça, minha cabeça perder teu juízo..."...ixeee, gastei e arranhei vinil ouvindo Cálice, e lá se vão anos...

abraços,
Tânia

Primeira Pessoa said...

marcia,
seguimos cavando, garimpando, resgatando coisas bonitas.
e compartilhando com os mais atentos.

abração do
roberto.

Flor de sal said...

O Ramos Rosa apareceu quando conhecí a Gisele http://amatrizdossonhos.blogspot.com/, e foi um lindo dia esse, entre a poesia e as imagens que me falam e calam. Tão bom poder ler e me entregar , agora, aqui também.

Beijos meus!

Primeira Pessoa said...

assis,
hoje passei a parte do dia plantando ervas (não aquela... outras... alecrim, sálvia e tomilho... na minha pauta de hoje) e tapando os buracos do gramado.
entrei em casa ha menos de uma hora e me debulhei de escutar discos de caras que sei que só caras como você conhecem (walter franco, carlos moura, jorge mello, belchior, ednardo, petrúcio maia... se ce nao tiver, eu te mando).

ta sendo uma avalanche.

a partir deste post, só escuto e bebo.

até sangrar essa saudade que to sentindo de mim mesmo (rs).

beijo procê, maradona de ondina... maradina de ondona...rs

quem assina é o coalhada do "morro da orêia"(ainda te conto sobre esse lugar).

r.

Primeira Pessoa said...

vixi, tania...
somos ex-jovens...rs

da era do vinil?

vou postar na segunda um lance nesse sentido... um presente de grego... me aguarde...

gostei do "olho lírico"... quem disse isto?

eu, quando jovem e pitava uns cigarrinhos artesanais, tinha um olhar co-lírico... ou mandava ver nuns óculos escuros...


beijão de quem ta voltando pros braços da carona, a mexicana mais leve... mais suave...

louríssima...

beijo meu procê.

Zélia Guardiano said...

Roberto

Talvez nem seja a vida um fato consumado...
Às vezes penso que sim.
Chego aqui, vejo que não.
Você tem um espírito muito vibrante. Lindamente vibrante!

António Ramos Rosa... da luz, da pedra e da água... do escrever ao meio-dia...
Tenho, dele, a Antologia Poética de 2001.
Lindeza!!!

Um grande abraço, amigo.

Jorge Pimenta said...

hello, new jersey boy!
ramos rosa? explosão de sensibilidade numa corrente de imagens que parece inesgotável. há dias estive com uma edição exclusiva, com carácter antológico, dele, na mão. comecei a folhear e, quando me dei conta, a tarde já tinha passado... mas os meus dias tornaram-se maiores, depois desse então.
olha, estou a deliciar-me com umas quantas músicas que um tal amigo me enviou:). lindas! como essa cuja letra aqui postas (do buarque).
um abraço!

Juan Moravagine Carneiro said...

é sempre um aprendizado adentrar em seu espaço...

Abarço!

Primeira Pessoa said...

zélia,
fico desconcertado com seus buquês, seus jasmins...

gentileza gera gentileza... existe essa corrente na blogosfera...
e você é mestra.

sua presença aqui me traz alegria.

saiba disto.

beijo grande do
roberto.

Primeira Pessoa said...

jorgíssimo,
como é que pode, um homem como eu, metido a leitor, só descobrir ramos rosa, eugénio, daniel faria, Llansol... depois dos 40 anos?

passei tempo demais a ler noticiários, quero crer.

to te mandando mais umas canções.
prepare os ouvidos.

abraço desse jersey boy (já menos boy que ha 20 anos atrás...rs... ex-boy...)

abração dele... o
roberto.

Primeira Pessoa said...

juan,
você é um gentleman... um cavalheiro...

eu é que aprendo com sua doçura, essa forma carinhosa de falar às pessoas.

seja sempre (e cada vez mais) bem vindo a este minifúndio de afeições.

abração do
roberto.

Em@ said...

António Ramos Rosa, um poeta algarvio...eu conheci-o em 78 ou 79, num dos seus internamentos no hospital de St Maria. andava ele por lá a escrever poemas nos azulejos das paredes...eu era estudante universitária e partilhava casa com um médico desse hospital, que sabendo da minha paixão pelo poeta me levou lá numa visita relâmpago. Tanto poema lindo havia naqueles azulejos...
beijo, R.

Solange Maia said...

Roberto,

e não é que esse mundo virtual tem me trazido tantas alegrias ?
vim parar aqui, e : sorte !

que delícia de espaço.

estava ouvindo :
"Não se afobe não,
que nada é prá já...
o amor não tem pressa,
ele pode esperar..."

mas, continuei com Chico, só que cantando Cálice. lindo.

Antonio Ramos Rosa :

"nenhum acaso
nenhuma porta
impossível sair"

... assim como é quase impossível sair daqui...
adorei.

beijos

Tania regina Contreiras said...

hehehe...esse olhar co-lírico é outro, diferente do olhar lírico do António Ramos Rosa: ele que usou a expressão.

Veja lá o que vai aprontar no próximo post, heim? Pois é, menino, era do vinil, parece que foi na "encadernação" passada quase...Mas, ora, claro, tenho que assumir que passei pela geração Lado A, Lado B... Estranhíssimo ver um vinil hoje, a capa enorme, o plástico, o espaço grande que eles ocupavam...

Bem, mas eu me lembro vagaaaamenteeee....era bebê...heehe... vamos dizer assim.

abraços,
tania

Marcantonio said...

Continuando a série das minhas ignorâncias... Há muito que venho dizendo sim ao inacabado. Essa palavra presa na garganta: um sim inconcluso.
Minifúndio de afeições é ótimo!

Abração.

Andrea de Godoy Neto said...

Roberto!!! Bem sei para onde correr quando minha alma sentir fome...

gosto do que me alimenta os sentidos e o saber, e fazes isso com primor.



(tenho uma pergunta pra ti, se não se importar: o que é ser raso em tudo o que faz? é que eu te enxergo denso e profundo...)

grande abraço

Primeira Pessoa said...

uai, andrea...

pergunta difícil a essa hora da manhã? rs
não sei responder direito, não. mas sei que lhe devo uma resposta.
ó, é mais ou menos assim...

a maior parte dos homens que conheço, passa a vida inteira elogiando (e aumentando) o tamanho de seus respetivos falos.
esses caras colocam uma lente de aumento sobre suas virtudes e habilidades, mascarando o melhor que podem as debilidades, fraquezas, ausência de virtudes.
acho que não é por aí. mesmo porque, quem lê, quem vê, quem convive, tem olho e olhar.

não tenho uma obra profunda, tenho consciência disto.
e isto talvez nem venha a acontecer. mas tô pelejando. tentando.
olhando-me no espelho, eu me vejo, salvo uma ou outra deformação, mais ou menos do jeito (e do tamanho) que sou.

pink floyd explica.

beijão de domingo procê.
r.

Primeira Pessoa said...

uai, marcantônio,
e nós, desde sempre, viemos dizendo sim ao mundo.
e o mundo ainda não está acabado.
e ainda não se acabou (rs).

felizmente... rs

sua presença aqui, um privilégio.
hoje e sempre.

abraço mineiro do
roberto.

Primeira Pessoa said...

tania,
vou publicar uma croniqueta (na verdade, um expediente...rs) amanhã, que vai dizer ao mundo a sua idade.
me aguarde.

bebê do meu tempo não escutava chico.
escutava circo do carequinha (rs).
a xuxa veio bem depois.
costumo dizer, pra avaliar a idade de uma mulher, se ela é pré ou pós-xuxa.

e xuxa, convenhamos, é pre-xuxa.

beijo grande procê.

deste que é pré-xuxa.

Primeira Pessoa said...

em@,
fico imaginando os azulejos de ramos rosa...
e o quão especial não foi este breve (e definitivo) encontro com o poeta.

e sorridente estou, imaginando a cena, relendo-te aqui no meu blog.

beijão,
r.

Primeira Pessoa said...

conheço o blog da gisela, renata.
muito, muito legal.
ela é muito sensível e é família do poeta, quero crer.

a jornada aqui na blogosfera tem sido deliciante.

no que descobri este mundo, descobri eu estava perdendo o interesse nas coisas que me movem (e comovem).

que bom que vocês existem.
e me acodem.

beijão,
r.

Primeira Pessoa said...

solange,
chico buarque vai bem em qualquer ocasião. e ramos rosa também.

acordei vasculhando umas gavetas antigas e resgatei um disco em que fagner e chico cantam A Aurora de Nova York, poema musicado de garcia lorca.

e foi uma hecatombe.
do bem. que se registre.


volte sempre. sua presença me traz conforto.

abração domingueiro
do
r.

Anonymous said...

Très beau!
O amor não pode dormir. O amor é pra já!
Adie qualquer coisa, menos esse sentimento que é (ou pelo menos deveria ser) a nossa essência.
BjO*

Primeira Pessoa said...

amélie,
bem vinda ao blog.
é verdade: o amor não pode ser adiado.ramos rosa está coberto de razão.
mas o amor fundamental. esse que não é apenas de um homem e de uma mulher.
um amor mais extenso, mais abrangente, mais amor...

tá faltando amor neste mundo.
vivemos num mundo desamante.
um mundo de excessões, das quais teimo em fazer parte.

e, um dia, reverter o que é regra...

abraço grande do
roberto.

Andrea de Godoy Neto said...

Roberto,
considero mesmo uma felicidade sabermos assumir o exato tamanho que temos, nem mais, nem menos. A maioria das pessoas que eu conheço também vivem em superfície.

Eu confesso ter dificuldade com isso, sou de extremos, então preciso de voos bem altos ou mergulhos bem profundos, o raso me sufoca.
Por isso te fiz a pergunta (e nem era pra ser difícil, viu?..rs), porque não vejo raso quando leio-te aqui. Percebo é a veia jornalística, que tende a explicitar as coisas, a remexê-las, trazer à tona. Percebo é a concretude cortejando a abstração. O raso, não consigo ver.

beijo grande pra ti (de domingo recém acordado :)

Primeira Pessoa said...

andrea,
desci do ônibus oito ou oitenta.
descobri que já não tinha mais vocação pra montanha russa. e que nao tenho idade pra vôos altíssimos e mergulhos profundos.
e nem tempo, quero crer. abusei de mim por quatro décadas. e ainda não me tornei bento.

confesso que nessa peleja cotidiana eu tinha medo de me tornar um medíocre (mais um, num mundo que já tem tantos), quando amainasse em mim essa sede de abismo e paraíso que nunca passava.

aqui, neste momento da vida em que estou, faz frio e calor. e é bom.

a obrigação (da luta pelo pão e do prover para uma família) me fez vestir esse casaco de pragmatismo e concretude (ismo).
mas sou abstrato por vocação. e é quando me sou mais feliz.
é quando me sou melhor.

sigo numa peleja imensa. e querendo (sem conseguir, admito) escrever (com) poesia.
mas não desanimo, não.
não sou teimoso. sou persistente. e isso me parece ser uma virtude (mascarada por tantos defeitos)
quem sabe num dia destes ainda não desaguo em mim?

beijo de quem vai pra horta e depois pra cozinha fazer um rango pra turma.

Tais Luso de Carvalho said...

Quando o amor machuca, o que mais queremos é adiar um possível próximo amor; é o que pensamos ser o mais sensato. Mas pensando bem, como o poeta diz, é difícil adiar o coração. Vá lá que ele tenha razão!
Achei lindo.

Bjs
Tais Luso

Primeira Pessoa said...

taís, a sobrinha do poeta, gisela rosa, tem um blog lindíccimo, com poemas e fotos muito legais. podendo, dê uma passadinha lá. virou parada obrigatória pra mim.

eis o blog:

http://amatrizdossonhos.blogspot.com


abração domingueiro com mãos de hortelã (eu tava até agora cuidando da horta e o cheirinho rescende...rs),

roberto.