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O Verdadeiro Peso da Terra
E se tudo o que disseram tiver sido mentira? E se não houver, finalmente, vida após a morte? Já imaginaram?
De um instante para o outro a chama da vida se extingue e, como uma vela apagada, deixaremos de iluminar a escuridão à nossa volta.
Assim, de repente, não mais que de repente e, como que reagindo ao movimento do dedo no interruptor, ou no botão onde Deus escreveu, em inglês, a palavra Off, chegamos ao fim.
Cessa o movimento do corpo, a memória se apaga e a estrada da vida chega ao seu final.
Acabou. The End. Fim.
Não há mais acerto de contas, nem purgatório, nem dono do inferno ou senhor do céu.
Não haverá São Pedro, nem Satanás para dar as boas-vindas à porta da próxima parada.
Nem céu, nem inferno, apenas o buraco negro do nada e a matéria se desintegrando, gradualmente, pasto de vermes.
Este é o ponto final. Todo mundo desce aqui.
A partir daqui, só o silêncio, a escuridão, a inércia, nada mais.
Já imaginaram?
Eu, que imaginei e fiz as contas, considero-me no lucro. Se não houver nada além, já terá valido a pena.
E valeu, porque andei de pés descalços sobre a grama orvalhada, mergulhei no doce das águas de um rio e no sal das ondas do mar. Vi o sol nascer e se pôr, conheci o amor, gerei crianças perfeitas, lindas.
Fui abraçado por mornas manhãs, fiz serenatas em noites de lua cheia, recebi o afago do vento e tomei banhos de chuva.
Li livros bons e ruins, conheci pessoas interessantes, gritei “gol”.
Chorei de alegria e de dor. Gargalhei, sorri.
Bebi a poesia de Neruda, Drummond e Lorca. Sonhei mudar o mundo e acordei, pacificado e nu, diante de um imenso deserto.
Não conheci a fome ou equivalente flagelo. Sempre existiu um cobertor para me proteger do frio e um teto como abrigo às tempestades. Decifrei, menino ainda, o significado da palavra lar.
Fiz amigos, muitos. E inimigos que não enchem uma mão.
Comi pão com mortadela de padaria, colhi fruta madura no pé, senti o perfume de um jasmineiro em noite de estrelas.
Nunca roubei, matei ou envergonhei quem me trouxe ao mundo. Fui abençoado por ter vindo de quem vim.
Ao longo dos anos tentei vencer a inveja e a mesquinhez. Não sei se consegui.
Mas meus pecados podem ser considerados menores, e os medos nunca me assustaram além da conta.
Saí de minha aldeia, corri trecho, visitei mundos que imaginava longínquos demais, paisagens tiradas de páginas impossíveis. Fui e voltei.
Aprendi a me arrepender dos erros e a pedir perdão, uma das tarefas mais difíceis para o ser humano.
Obra em andamento, eu sei que ainda tenho muito a melhorar. Mas não perdi a esperança.
Se tudo o que disseram durante toda a vida tiver sido mentira, não terei mais perguntas a fazer. Nem queixumes.
E me darei por satisfeito se tiver conseguido melhorar o produto final, quando tiver chegado àquela hora de ir desta para lugar nenhum.
Reduzido a simples matéria, sei que a terra me será leve, muito leve.
10 comments:
tim tim - antes de mais nada, um brinde à vida! do lado de lá, não sei - e na verdade nem quero saber... risos
como tu, sou afortunada! e também agradecida!
gostas de me ler, então é chumbo trocado - e tenho até inveja (da boa) de conseguires escrever prosa - disso sou incapaz! então leio e admiro! e gosto!
besos
líria
Gosto muito de te ler, sim.
E admiro-me a sua fertilidade (muitos e bons!).
Como te disse, só tenho conseguido sonhar em preto e branco.
E a poesia só mora na gente quando os sonhos são em tecnicolor (rs).
ó,
só de cê me ler já fico muito feliz... e gostando, então...
saio dando umas piruetas por aí.
abração do
r.
Parafraseando Vargas Llosa: "É possível que deus exista, mas isso, a esta altura da história, com tudo o que nos aconteceu, tem alguma importância? "
Olá, Roberto e obrigada pela visita.
Achei tão bonita sua "crônica de si", ou se-ria de mim? cozinho pra não enlouquecer... raso, profundo e tudo o mais, largo...
Um beijo.
Nina,
é a mais pura verdade... quando as coisas não andam do meu jeito, corro pro fogão...
O calor do fogão faz bem aos miolos (rs)... Não, não é uma teoria pinkloydiana...
Agradeço a visita.
Apareça sempre.
Abração do
Roberto.
Linda prosa! Não importando a crença sobre se há ou não algo depois da vida, basta sentir que a viveu de forma intensa, sem ultrapassar o limite do outro.
Que bom que se sente, então, assim.
Gostei muito do texto, parabéns!
Que bom que você gostou, Lara.
Esse tema é polêmico, né?
Não importando o destino final deste "trem" da vida, o importante é que durante a viagem, do ponto de partida à derradeira estação, paisagem tenha sido repleta de "belas paisagens".
Deixo um abraço e muito de amizade.
Roberto.
Boa tarde, Roberto, tem uns versos meus, de um poema que termina assim:
...o universo a um seco estalar de nossa finitude
se desmancha, então, e passa?
Ou trazemos , dos cumes da criação,
em tudo que brota, rebrota,
a mais irrestrita ,
a mais eterna proposta?
A resposta fica em aberto, meu amigo, e tua crônica é linda. Grande abraço.
que belo verso, fernando...
e o seu fã clube tá só aumentando...
a propósito, lembrei-me de uma frase divertida de um amigo, comentando o espiritismo... segundo ele, os vegetarianos não desencarnam... eles reflorescem...
algo assim...
bunitim, né?
abração do
R.
obrigada por ter escrito esse texto.
é daqueles que salvam o dia.
xero.
e você nem tava se afogando, Iara...
gosto desta crônica.
se conseguir reunir as menos piores num livro, essa estará lá.
abração do
R.
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