Saturday, December 26, 2009

.

















Tramas de um tema fugidio

Nem sempre quem vive do ofício de escrever consegue traduzir em palavras as suas visões, obsessões e sentimentos. Já me frustrei em várias situações, vendo-me obrigado a enterrar temas que julgava bons.
Alguns eram de cunho pessoal, outros meramente circunstanciais.
Os circunstanciais costumam passar.
Os de cunho pessoal, não.
E ficam ardendo em quem não teve lastro para parir seu invento, marcando na pele da alma como se ferro quente fosse.
Quando minha avó paterna morreu, eu quis escrever uma crônica declarando a ela todo o meu amor.
Tínhamos uma história maior do que aquelas normalmente inerentes - e que já são imensas, por si - a uma avó e seu neto.
Eu, que nasci à luz de uma lamparina numa cidadezinha do interior de Minas Gerais, tive em Ana Emília a parteira.
Foi por suas mãos que vim ao mundo.
Ela foi a primeira pessoa a me tocar e a embalar um choro meu.
Cresci apreciando seus frangos ao molho pardo, seus biscoitos de polvilho e a habilidade de alinhavar versos de encantadora pureza.
Acho que meu gosto pela poesia veio dali, daquelas singelas trovinhas de Ana Emília.
Mas Ana Emília se foi.
Ao contrário de tanta gente que pede a conta da vida, paga e sobe, contente, Ana Emília driblou, o quanto pode, o “garçom” da vida.
Tinha 104 anos quando se viu obrigada a assinar a fatura.
Deixou saudades, lições preciosas, e uma lacuna impossível de ser preenchida.
Senti tanto sua morte, que não logrei escrever absolutamente nada que traduzisse o que sentia - e sinto - por ela.
Sentava-me à frente do computador e não conseguia digitar mais do que meia dúzia de frases.
Lia em voz alta, relia, tentava costurar palavras às emoções e apagava tudo, logo a seguir.
Mais de um ano depois de Ana Emília nos ter deixado, vira e mexe, a vontade de escrever alguma coisa para ela renasce. E me ilude, uma vez mais.
Como uma brasa acesa pela brisa da saudade, a fogueira da inspiração até chega a se insinuar.
Mas aí bate um vento mais forte que a tudo apaga, bloqueando os sentimentos.
E uma chuvinha fina, a do desânimo, começa a respingar sobre as idéias, arrefecendo o desejo de homenagear minha avó.
E esta não é a única frustração que carrego neste, digamos, “departamento”.
Existem outros temas que também não foram bem resolvidos, mas que precisam ser.
Durante um bom tempo de um tempo bom de minha vida, pensei em escrever uma história de amor.
O palco: Santana dos Ferros, terra de Roberto Drummond, uma figura definitiva em minha trajetória de operário da palavra.
Como um pupilo que provocasse o mestre, eu queria surpreender Roberto, que tinha obsessão pela morte. Seus livros evocavam isto:
Quando Fui Morto em Cuba, A Morte de D.J. em Paris, O Dia em que Ernest Hemingway Morreu Crucificado, Os Mortos Não Dançam Valsa, sua última publicação, atestam bem essa obsessão.
E eu queria algo que evocasse e celebrasse a vida.
Uma estória que, ao contrário das suas, tivesse um final feliz.
Uma estória simplória como a água da chuva, cuja sofisticação residisse justamente nessa singularidade.
Não haveria eletrizantes perseguições policiais, mas uma charrete rodando numa estrada de pé-de-moleque, ao som da percussão das ferraduras batendo nos cubos de pedra.
Ao invés de ditadores e agentes de espionagem truculentos dos seus romances, crianças correndo pelo jardim forrado de margaridas, lírios e jasmins.
Ao contrário de seus assassinos de aluguel, seresteiros.
No lugar do estampido de tiros de pistolas, metralhadoras e revólveres dos seus livros, a suavidade de cavaquinhos, bandolins, violões e flautas.
Na contramão dos golpes de estado, saraus.
E uma lua cheia cuja luz atravessasse a vidraça e a cortina do quarto desta aludida casa das margaridas, e iluminasse um casal trocando beijos e juras de amor eterno.
Mas sei que Roberto Drummond acharia essa idéia ingênua demais.
"Não vai vender nem para a sua própria família", imaginei sua voz ao meu ouvido.
Ele certamente não me permitiria escrevê-la, até o fim.
Meu mestre sempre preferiu beber da água turva do caos.
Ou a morte pela sede, com a dramaticidade apropriada de um personagem seu.

Nota de rodapé:
Certa noite, em BH, comecei a falar desse impossível futuro romance para Roberto e ele me pediu que parasse de contar, imediatamente. E argumentou:
- Páre, ou você terá que me matar aqui mesmo. Se me contar mais uma palavra, começo eu mesmo a contar esta estória quando chegar em casa. E dou um jeito de avacalhá-la com algum incesto, alguma vingança de família, algum corruptor...
Menos de um ano depois, Roberto morreria, de ataque cardíaco, horas antes do jogo Brasil X Inglaterra, naquela copa do mundo disputada na Ásia.
Meu amigo, meu mentor e parceiro de chopes e quimeras também deixou uma lacuna impreenchível.
Ao contrário de minha avó, escrevi uma dúzia de crônicas relembrando momentos nossos, esmiuçando essa saudade que nunca terá um fim

*

5 comments:

ana p said...

Mas esta cronica e uma homenagem e quase um romance de amor... Eu adorei Roberto...
Beijo

Primeira Pessoa said...

Magnólia,
a amizade é uma das mais nobres formas de amor.
sim, vira e mexe, to homenageando o Roberto, que me homenageou muito, em vida.
Qauanto a Ana Emília...
continuo em débito.
Mas sou dos que costumam pagar. Pagarei.
Eu, que me cumpro sempre.
Abração domingueiro do
Roberto.

Fernando Campanella said...

Maravilha de crônica, vc escreve bem pra burro, rs... E que linda esta música 'meu coração brasileiro', ah, rapaz , teu espaço está maravilhoso e que sejamos grandes amigos em 2009.
Ah, andei meio ausente pois meu blog deu pane, não estou conseguindo acessar, terrível, parece que fica me faltando chão, putz, como este negócio de criar algo pega a gente, rs... sem escrever ou fotografar parece que não sou gente.

Olha, eu sempre quis escrever memórias como as tuas, eu sempre quis escrever sobre uma senhora que me criou, foi como minha mãe, mas caio no sentimentalismo, rs.... Vc tira de letra a crônica, tuas memórias são simples, mas o afeto sai com uma escrita fascinante, na dose certa...eu me derreto mais pro lírico, acho que é coisa de poeta, rs....
Grande abraço novamente, meu amigo.

Fernando Campanella said...

Errata, ops, 'que sejamos ótimos amigos em 2010, desculpa a falha, em 2009 já somos companheiros, rs....abração.

Primeira Pessoa said...

Fernando,
Coração Brasileiro é da autoria de Celso Adolfo, tão mineiro quanto nós dois (ele é de São Domingos do Prata). Sou fã dele.
A letra original não é essa. Essa daptação foi feita a pedido de Carlos Nuñez, um gaiteiro da Galícia, que fez um disco inteiro com músicas brasileiras muito legais.
Te mando as duas versões por email - me passe o dito cujo, por favor -.
E, sim, que 2010 seja um ano propício às boas amizades e ao bem querer.
Você já me ganhou.
Abração garantido do
Roberto.