Wednesday, December 30, 2009

.



A solidão dos domingos

Ontem foi domingo. Um domingo plúmbeo, que nem de longe se deixou transparecer um domingo de verão. Quase enlouqueci.
Acho que o fato de ter sido véspera de feriado também ajudou, transformando as ruas de Kearny num pavilhão de escombros. Fiquei inconsolável com o panorama que se desenhou diante de meus olhos.
Da janela do apartamento, vislumbrei o manto cinza que cobria a tarde, trazendo a reboque a lembrança de muitos outros domingos melancólicos de minha vida.
Sempre vi o dia em que Deus descansou de uma forma morna, ressaqueada, como se algo tivesse se quebrado, ou reerguido das cinzas, dentro de mim.
Essa foi sempre a percepção.
Em alguns domingos, penso que o mundo vai se esvair em marasmo e melancolia.
Em 1986, aos 23 anos de idade, escrevi um livro de poesias, que batizei de “Tango Fantasma”, título de um dos poemas da obra.
No poema aludido, eu falava exatamente da solidão de um domingo qualquer, que nascia parido da solidão de outros tantos domingos, e de um sujeito que perdera a esposa e a amante durante um único ciclo de sete dias.
Lembro-me que escrevi esse poema num domingo à tarde, após retornar de um almoço na casa do poeta Marcos Pizano.
As ruas de Governador Valadares estavam desertas e, tão logo tomei o ônibus para o bairro de São Raimundo, tive uma forte impressão de que havia entrado num trem fantasma.
Apenas o motorista e o trocador fizeram-me companhia durante toda a viagem, o lotação saltando feito um cabrito ensandecido sobre a estrada esburacada.
No alto-falante do teto do ônibus, a voz de Chico Buarque cantava:
“Ó pedaço de mim ó metade arrancada de mim”...
Cheguei em casa aos frangalhos, sentindo o peso de uma barra pesadíssima que aquele domingo implacável havia jogado sobre mim. E nunca mais me curei.
E assim continua sendo, tanto tempo depois, os domingos se repetindo com os mesmos contrastes, escrevendo minha história com pedaço de carvão sobre uma superfície de pedra.
Para mim, o domingo será sempre feito do programa Globo Rural, tendo, na sequência, Rolando Boldrin apresentando modinhas de viola e contando “causos” no Som Brasil.
Meu domingo terá Ayrton Senna da Silva, incólume com seu macacão e capacete impecavelmente limpos, ultrapassando mitos, acelerando seu nome nas páginas do esporte.
Afinal, domingo sem Galvão Bueno cuspindo bairrismos ao microfone serão ilegítimos.
E é por isso - e por muito mais -, que meus domingos serão sempre de almoço em família.
Domingo de irmã chegando com filho pequeno no colo, de mãe mexendo a comida no fogão, e de sobrinhos indomáveis correndo pela casa, como se ali fosse o pátio da escola durante o recreio.
Meus domingos foram, são e serão, sempre, de macarronada, de frango assado com farofa, de empadão de camarão, e de salada de legumes cozidos com maionese.
Meus domingos terão Sílvio Santos na televisão:
- Quem quer dinheiro?
Terão, também, partidas de futebol, cerveja espumosa transbordando pelos copos e escorrendo em rios que jamais desaguarão em lugar algum.
Serão domingos de clássico no Mineirão, sem nenhum grito de gol que nos redima e reconduza à glória.
Domingos como os de sempre,com folhas de jornal previamente lidas, amassadas, levadas pelo vento no bojo das tardes abandonadas.
Esse abandono com cara de ‘nunca’, semblante de ‘jamais’ é igual para todos nós. E ele se repete semana após semana, e tem o gosto requentado do jantar de ontem.
Sabemos, sempre, que o próximo virá vestido de um até breve e, como este que agora escorre entre nossos dedos, terá trejeitos decadentes de fim de festa. E essa é a nossa única certeza.
O fim da festa, moça. O fim de tudo, rapaz.
O viver verdadeiro, pleno e feliz, esse quase-milagre, só chegará amanhã, com o clareamento do dia, o corre-corre dos transeuntes e as buzinas dos automóveis nos ensurdecendo pelas ruas.
Segunda-feira não é mais o fino da fossa.
Segunda-feira é o berço da ressurreição da raça humana.


*

15 comments:

Fernando Campanella said...

Síndrome do domingo, espero tanto por ele e quando vem é esta ausência, esta ressaca morna, rs... Olha, fiz uns versos para o domingo há algum tempo atrás, veja se gosta:

Três poemas e entre eles
o domingo,
minha pena cordial

meu arroio sem glória
meu Tejo
meu tédio sem nau.
(Fernando Campanella)

Brigadão pela música do Celso Adolfo, Coração brasileiro, já recebi o e mail, adoro esta música e faz tempo que não a ouvia, toca lá no fundo, sabe, coisas de raízes da alma mesmo.
A propósito, esta música de hoje, o 'blackbird' eu só conhecia com os beatles, e curti muito esta versão, maravilha, quem está cantando?

Abração com um gostinho de virada do ano. Feliz 2010, e grandes amigos sejamos.

Primeira Pessoa said...

Fernando,
essa versão aí é de Denzal Sinclair (acho que se escreva assim), um cantor de jazz canadense. vou te mandar o mp3 dela.
e, grandes amigos, ja somos...rs
abração,
roberto.

Primeira Pessoa said...

ah,me esqueci de comentar o poema.
inspirado, fernando... bonito...
e me remeteu a lugares dentro de mim...
ó, já mandei o mp3 prometido.
abraços do
roberto.

Anonymous said...

Estou perdida neste domingo sem frio e sem calor
Eu me dou melhor comigo mesma quando estou Infeliz
Quando me sinto feliz, parece que sou outra.
Embora outra da mesma
Outra, estranhamente alegre, esfuziante,
Levemente infeliz é mais tranquilo.
(Clarice Lispector)

Deve existir uma teoria filosófica, cultural ou histórica para existir um dia chamado de domingo. Tenho certeza que num futuro não muito distante os meus domingos deixarão de serem púmbleos, solitários, frios e cor de chumbo.

Um Feliz ano novo para ti, nesta nova casa, que está linda. Parabéns, Roberto.

Rute Braz.

Primeira Pessoa said...

Pois é, Rute... Vê o tamanho do meu drama?
Mas os domingos podem ser mudados, sim.
E Thiago de Mello queria que todos os dias se transformassem em domingos...rs
Obrigado pelas palavras carinhosas.
Fazer este blog tem me dado muita alegria. Aqui tenho tido a oportunidade de trocar impressões com pessoas com quem tenho afinidades, que se emocionam pelos mesmos motivos que eu.
A palavra tem força.
Só a palavra salvará o mundo.
Que seu ano de 2010 seja repleto de dias bonitos. E que a cor plúmbea de seus domingos se transforme, como que num passe de mágia branca, no azul mais azul que existir.
Feliz 2010. Muita poesia em sua vida.
Abraço de admiração do Roberto.

Primeira Pessoa said...

Silvana,
você escolheu - muitíssimo bem - o genial Quintana pra fechar com chave de ouro esse ano que foi cheio de altos e baixos para muitos de nós.
Meu ano foi, tipo assim: foi ruim, mas foi bom.

O que não foi do meu jeito, tenho esperança e peito para fazê-lo ser.
Minha chama permanece acesa e sei que tenho muita "querosene" para queimar.

No mais, que 2010 chegue sereno, lúcido...
Essa é a minha esperança.
Retribuo o carinho e os votos.
Muita luz pra você, nesse ano novo que se anuncia em algumas horas.
Abração do
Roberto.

ju rigoni said...

É lindo esse texto que ultrapassa o virtual das janelas. Digo-lhe que há muito dos meus nesses seus domingos...

Quanto ao que você disse por lá... Engana-se, Roberto. Sou eu quem tem a agradecer-lhe.

Bjs, e que 2010 traga para você e para os seus muita saúde, paz, amor, e realizações.

Inté!

PS: Já estive antes em sua página, tentando comentar, mas não consegui. Minha conexão é a rádio, a única possível. O lugar onde moro, ainda é um dos menos privilegiados no litoral de Maricá. Às vezes me parece estar entre o nada e o coisa nenhuma. O único luxo por aqui é o mar. Bjs, de novo.

Primeira Pessoa said...

Ah, Juliana... quero mudar a sina dos meus domingos em 2010. Sabe aquelas resluções de final de ano?
Essa é uma delas.
E querer já é a metade do caminho.
Olha, nasci nas montanhas mineiras e o mar sempre foi, pra mim, um luxo.
E, conexão a rádio é bem melhor do que a carvão, não acha?
Nem que nos comunicássemos por sinais de fumaça...
Tá tudo bem.
Abração do
Roberto.

líria porto said...

domingo nem é dia de beber, é de curar ressaca! e tudo para que a segunda seja um dia de primeira!
besos

Primeira Pessoa said...

acho que fizeram o dia de domingo pra eu sofrer, Líria.
Sofro tanto nos domingos...rs
Domingos são feitos de chumbo e dor.
Beijão do
R.

líria porto said...

ainda bem que faltam poucos minutos pro maldito acabar!

dá um sorriso??

besos

Iara Maria Carvalho said...

Menino, você é um achado!

Que lindeza de texto! Como você consegue transformar o abandono do domingo nessa sensação de arrebatamento, nostalgia, evasão pra outros mundos, outras eras?!...

Você, escrevendo sua história com "pedaço de carvão sobre uma superfície de pedra", se inscreveu mineral e doce aqui dentro.

Fiquei querendo sua poesia. Seus fantasmas, seus trens, seus domingos convertidos na melancolia de versos... Onde? Onde?

Beijos...

Primeira Pessoa said...

Ah, Iara,
e meus domingos conseguiram piorar, acredita?
Ficaram mais cinzentos, mais plúmbeos, mais doloridos, nos últimos dois anos...
Fico maluco pra que a segunda feira chegue correndinho, pra eu voltar a trabalhar (rs)
Mas eu tenho esperança... Ah, como tenho esperança...

Abraçào do
Roberto.

Marilton said...

Nossa... a que ponto chegamos na tecnologia... encontrei você.. um da minha turma de infância. O que aconteceu com o COLOSSO CICLONE, O CATACLISMA DAS CALÇADAS.. nossos ENCONTROS DE POETAS, os sonhos que inventamos. Onde foi parar DA SILVA SILVANO, MARCOS PIZANO, BISPO FILHO e tantos outros....Doce tempo aquele em que eu era apenas um garoto metido a poeta, me espelhando em vocês e sonhando ser grande.A MORTE É DOCE E A VIDA ETERNAMENTE SAUDAVEL! Um abraço sincero e agradecido por tudo que vivemos e sonhamos. Com certeza não se lembra de mim, mas sou o poetinha que ainda sente, mas que hoje faz das palavras apenas um segredo fantastico na alma.
Marilton

Unknown said...

Ola Robertinho, se me ouvires....rsrsr
Gostaria apenas de perdoar a mim mesmo pelos deslizes da lingua, da qual tú já conheces os mais íntimos mistérios. A mim, me basta me fazer compreendido afinal, hoje, meu pão de cada dia exige pouco de virgulas, pontos, exclamações, embora tenham muitas reticencias...rsrs Apenas desejo que o que me tornei hoje, não seja medido apenas pela capacidade de equalizar os detalhes do nosso rico e por vezes confuso português..rsrsr
Abração.