Por quem os sinos dobram
Conheci Raul Seixas. Será que posso afirmar isto?
Eu tinha 16 anos e fazia um bico em um restaurante de posto de gasolina na saída de Governador Valadares.
Devia ser umas duas da tarde e o calor infernal daquele dia de verão era suficiente para fritar um ovo no asfalto.
O roqueiro chegou a bordo de um modesto Fiat, atravessou o salão e levou seu corpo magro ao banheiro.
Voltou de lá alguns minutos depois, debruçou-se sobre o balcão e pediu uma água mineral.
Dali a pouco chegou uma mulher, que ele chamava carinhosamente de Kika.
Servi-lhes a água pedida, e fiquei olhando para aquela figura esquálida de cabelos desalinhados, cavanhaque generoso e óculos ray-ban de lentes escuras. O rosto miúdo e fino dava a impressão de que os óculos eram muito maiores do que realmente eram.
A companheira se ajeitou, carinhosamente, ao seu lado e os dois ficaram ali, em pé, saciando a sede, trocando carinhos e olhando para a prateleira cheia de Undembergs, conhaques de São João da Barra e Jurubebas Leão do Norte.
Curioso, inconveniente, num daqueles arroubos adolescentes, perguntei se ele era o Raul Seixas. Ao que respondeu com simpatia, quase doçura:
- Raul Seixas, Raulzito... Pode me chamar como quiser.
Nem parecia uma estrela da MPB.
Animado, contei que em Valadares tinha um sujeito meio maluco que tocava violão, cantava suas canções, imitava seu visual e que dizia ser ele, Raul Seixas.
E o ‘original’ ali na minha frente sorriu, interrompido pela mulher, que contou que havia muitos outros clones de Raulzito espalhados pelo Brasil.
No coração de Minas Gerais, haviam acabado de encontrar mais um “maluco beleza”. E aquilo os alegrava.
Raul fez perguntas sobre seu clone valadarense, o Landinho, e se divertiu com as peripécias do fã.
Ficamos conversando durante uns dez minutos e, quando ele se preparava para ir embora, pedi um autógrafo, um dos muitos que ainda pediria pela vida.
Ele foi ao carro e trouxe de lá um pôster de divulgação do seu LP “Por Quem os Sinos Dobram”, perguntou meu nome e nele escreveu:
“Roberto, os sinos dobram por você. O abraço do Raul Seixas”.
Uns 20 anos depois, estou na nova casa de meus pais em Belo Horizonte e minha mãe apareceu com uma caixa cheia de papéis e outras bugigangas, perguntando o que deveria fazer com aquilo.
Abri uma cerveja gelada, sentei-me no chão do quarto e fui retirando de dentro da caixa todos aqueles pedaços esquecidos de mim.
Achei um caderno grosso com meus primeiros poemas e duas mini-crônicas, manuscritas no verso de um cartaz anunciando a candidatura de Tancredo Neves para o Senado.
Conheci Raul Seixas. Será que posso afirmar isto?
Eu tinha 16 anos e fazia um bico em um restaurante de posto de gasolina na saída de Governador Valadares.
Devia ser umas duas da tarde e o calor infernal daquele dia de verão era suficiente para fritar um ovo no asfalto.
O roqueiro chegou a bordo de um modesto Fiat, atravessou o salão e levou seu corpo magro ao banheiro.
Voltou de lá alguns minutos depois, debruçou-se sobre o balcão e pediu uma água mineral.
Dali a pouco chegou uma mulher, que ele chamava carinhosamente de Kika.
Servi-lhes a água pedida, e fiquei olhando para aquela figura esquálida de cabelos desalinhados, cavanhaque generoso e óculos ray-ban de lentes escuras. O rosto miúdo e fino dava a impressão de que os óculos eram muito maiores do que realmente eram.
A companheira se ajeitou, carinhosamente, ao seu lado e os dois ficaram ali, em pé, saciando a sede, trocando carinhos e olhando para a prateleira cheia de Undembergs, conhaques de São João da Barra e Jurubebas Leão do Norte.
Curioso, inconveniente, num daqueles arroubos adolescentes, perguntei se ele era o Raul Seixas. Ao que respondeu com simpatia, quase doçura:
- Raul Seixas, Raulzito... Pode me chamar como quiser.
Nem parecia uma estrela da MPB.
Animado, contei que em Valadares tinha um sujeito meio maluco que tocava violão, cantava suas canções, imitava seu visual e que dizia ser ele, Raul Seixas.
E o ‘original’ ali na minha frente sorriu, interrompido pela mulher, que contou que havia muitos outros clones de Raulzito espalhados pelo Brasil.
No coração de Minas Gerais, haviam acabado de encontrar mais um “maluco beleza”. E aquilo os alegrava.
Raul fez perguntas sobre seu clone valadarense, o Landinho, e se divertiu com as peripécias do fã.
Ficamos conversando durante uns dez minutos e, quando ele se preparava para ir embora, pedi um autógrafo, um dos muitos que ainda pediria pela vida.
Ele foi ao carro e trouxe de lá um pôster de divulgação do seu LP “Por Quem os Sinos Dobram”, perguntou meu nome e nele escreveu:
“Roberto, os sinos dobram por você. O abraço do Raul Seixas”.
Uns 20 anos depois, estou na nova casa de meus pais em Belo Horizonte e minha mãe apareceu com uma caixa cheia de papéis e outras bugigangas, perguntando o que deveria fazer com aquilo.
Abri uma cerveja gelada, sentei-me no chão do quarto e fui retirando de dentro da caixa todos aqueles pedaços esquecidos de mim.
Achei um caderno grosso com meus primeiros poemas e duas mini-crônicas, manuscritas no verso de um cartaz anunciando a candidatura de Tancredo Neves para o Senado.
Resgatei um cartão postal da cidade do Serro-MG, lugar escolhido para as férias de um meio de ano do poeta Abel Costa. Nele estava escrito:
“No Serro, subi a serra e fui a um enterro”.
Reli cartas de amigos e ex-namoradas, fotografias, bolas de gude que sobreviveram à minha infância, recortes de jornais e revistas.
Um destes recortes era a capa da revista Veja que anunciava a morte de Elis Regina. “Nasce uma Estrela”, era a manchete.
Emocionei-me, como havia me emocionado no dia em que Elis resolveu subir aos céus e se tornar zelação.
Encontrei um livro de Carlos Drummond de Andrade todo perfurado por traças.
Abri, numa página qualquer e, de lá de dentro saltou, além do cheiro implacável do tempo que passou, uma pergunta que cortou feito navalha:
“E agora, José?”.
De dentro de uma caixa de pó-de-arroz ainda em bom estado de conservação retirei o primeiro dente de leite que me caiu e um pedaço pequeno do cordão umbilical já mumificado, amarrado por um cordão de desbotado azul.
No diminuto folheto do circo mexicano se espremiam os maiores trapezistas do mundo, o homem-bala e um anão que cospia fogo.
Exatamente como no dia que o encontrei na avenida JK, naquele diadema prateado faltava uma pedra de imitação, que sempre imaginei ter sido da cor vermelha.
Tinha também um calendário dos pneus Pirelli, cheio de moças desnudas, lindas, musas de um tempo que não volta mais.
Encontrei ainda um exemplar do Novo Testamento em miniatura, um álbum de figurinhas com os heróis do tri – incompleto -, meio time de futebol de botão, um espelho de bolso oval com o escudo do Cruzeiro em seu verso, uma fita arrebentada do Senhor do Bonfim – sem que meu pedido jamais tenha se cumprido -, um frasco de seiva de alfazema quase pela metade e aquele surpreendente pôster de Raul Seixas.
Abri um sorriso bom e em algum lugar dentro de mim, a lembrança do doce encontro com o cantor fez com que se dobrassem sinos.
E eles dobraram por Raulzito, santo padroeiro de todos os malucos-belezas desse mundo.
E dobraram, também – e por que não? -, como naquela dedicatória assinada por ele, pela vez derradeira, por mim.
“No Serro, subi a serra e fui a um enterro”.
Reli cartas de amigos e ex-namoradas, fotografias, bolas de gude que sobreviveram à minha infância, recortes de jornais e revistas.
Um destes recortes era a capa da revista Veja que anunciava a morte de Elis Regina. “Nasce uma Estrela”, era a manchete.
Emocionei-me, como havia me emocionado no dia em que Elis resolveu subir aos céus e se tornar zelação.
Encontrei um livro de Carlos Drummond de Andrade todo perfurado por traças.
Abri, numa página qualquer e, de lá de dentro saltou, além do cheiro implacável do tempo que passou, uma pergunta que cortou feito navalha:
“E agora, José?”.
De dentro de uma caixa de pó-de-arroz ainda em bom estado de conservação retirei o primeiro dente de leite que me caiu e um pedaço pequeno do cordão umbilical já mumificado, amarrado por um cordão de desbotado azul.
No diminuto folheto do circo mexicano se espremiam os maiores trapezistas do mundo, o homem-bala e um anão que cospia fogo.
Exatamente como no dia que o encontrei na avenida JK, naquele diadema prateado faltava uma pedra de imitação, que sempre imaginei ter sido da cor vermelha.
Tinha também um calendário dos pneus Pirelli, cheio de moças desnudas, lindas, musas de um tempo que não volta mais.
Encontrei ainda um exemplar do Novo Testamento em miniatura, um álbum de figurinhas com os heróis do tri – incompleto -, meio time de futebol de botão, um espelho de bolso oval com o escudo do Cruzeiro em seu verso, uma fita arrebentada do Senhor do Bonfim – sem que meu pedido jamais tenha se cumprido -, um frasco de seiva de alfazema quase pela metade e aquele surpreendente pôster de Raul Seixas.
Abri um sorriso bom e em algum lugar dentro de mim, a lembrança do doce encontro com o cantor fez com que se dobrassem sinos.
E eles dobraram por Raulzito, santo padroeiro de todos os malucos-belezas desse mundo.
E dobraram, também – e por que não? -, como naquela dedicatória assinada por ele, pela vez derradeira, por mim.
*
13 comments:
que inveja. eu aos dezesseis anos dormia numa caçamba. mas já gritava "toca, rauuuuuuuuuuulllllllll".
cheiro.
rs...
nina, aos 16 anos eu morria de medo. minha geração só encontrava fuga na música e na literatura.
não votávamos, éramos obrigados a cantar o hino nacional antes das aulas e ainda desfilávamos no dia 7 de setembro durante a parada militar.
não tenho saudades.
e essa crônica é bem antiguinha. Desenterrei pra postar aqui.
abração do
R.
o jeito que vc descreve o Raul, parece que vejo a cena... tudo.
me apaixonei pelo Primeira Pessoa. Adorei a sua escrita. Sigo e volto sempre.
Abraço
poxa, ana paula, que bom que cê gostou dessa bagunça aqui.
sou neófito nesse assunto. to aprendendo "no serviço"...
mas tá sendo muito legal e me dando a oportunidade de trocar experiências com pessoas da prateleira de cima.
venha sempre.
agora vou dar uma passada no seu cantinho e ver se o vento que sopra em antonina é o mesmo que encrespa as palmeiras imperiais de são joão del rey.
tudo é brasil, né?
abração do
roberto.
Nossa, se inveja matasse... Quem me dera poder ter um pôster desse.
Vc citou grandes ídolos meus no seu texto: Elis, Drummond e o meu muso inspirador mor Raulzito.
Sua crônica me emocionou muito. Não consegui despregar os olhos da tela. Adorei ler essa interessante pequena parte da sua história.
Abraços. Bom natal =)!
Raul tinha um poder fascinante sobre as pessoas.
De todos os grandes nomes brasileiros que "partiram antes do combinado", ele talvez seja o único a despertar, desta forma, neste grau, essa empatia.
Quando for a BH tentarei reencontrar este pôster. Se o achar, é seu.
Abração do Roberto.
Olha, Roberto, vc é danadinho, fica nos encantando com tuas estórias, então venho aqui para ouví-las, impossível deixar de querer ler tudo. Grande abraço.
E você, esse lorde do sul das Geraes, sempre generoso nos comentários... sempre com um buquê nas mãos.
Abraçao de véspera de natal pra você, poeta.
Como se fosse meu presente.
Abração do
Roberto.
Ah, que legal! Promessa é dívida, hein? hehe...
A avó do meu namorado mora em BH, quando vc vier ao Brasil, me contate lá no meu blog. Beijos.
Deixa comigo... é só achar o bendito, que faço chegar às suas mãos.
Vai fazer bastante sucesso entre seus amigos rauseixistas...
abração
R.
raulzito meu amor...
(claro: tive/tenho mais de um!)
besos
Líria,
bom te ter de volta nesse cantinho.
Tava sentindo falta dos seus comentários.
Raul era foda, né?
Fodástico!
Beijão do
R.
Roberto, adorei! Você escreve de uma maneira leve , clara e sedutora. Vejo um garoto ,16 anos diante do seu ídolo. Tamanha tenha sido sua emoção!Consigo ver você mexendo na caixinha da saudade e resgatando cada uma .Estou me deliciando! Obrigada!
Post a Comment