Thursday, April 22, 2010

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Naquele Segundo, Em Algum Lugar

Escutei no radio que o próximo ano vai ter um segundo a menos. O que não é grave.
Sou da opinião de que chegar um segundo atrasado a qualquer lugar ou ocasião não é o fim do mundo. Afinal, é "apenas" um segundo.
Mas os cientistas se juntaram e, na passagem do ano, lá foram acertar o relógio oficial do planeta. Dizem que é porque a Terra foi se atrasando bocadinho atrás de bocadinho no seu giro diário, até completar um segundo no último dia de dezembro. No final, foi preciso o homem dar um jeitinho.
Não é a primeira vez que isto acontece, o que para mim é igualmente irrelevante.
No outro dia vi o personagem de um filme alemão definhando, sofrendo horrores numa cena em que contemplava o suicídio, refletindo o óbvio, de que a vida inteira de uma pessoa corresponde a um mero segundo na história da humanidade.
Mais do que isto seria presunção, disse eu – estranho maluco - ao homem que penava dentro do aparelho de televisão. Mas ele não me escutou.
Até aquele momento eu não havia pensado no assunto com semelhante enfoque. Afinal, cada existência é do tamanho que é, como sempre vi.
Sessenta segundos se juntam para compor um minuto e sessenta iguais redundam em uma hora. Vinte e quatro destas compõem um dia. Sete destes e teremos uma semana. Quatro semanas perfazem um mês. E doze meses, juntos, somam um ano. Cem destes últimos fazem um século. Simples!
E assim caminha a humanidade, dia após dia. Ano após ano.
E não se fala mais nisto.
Mas, ontem, tarde da noite, ao levantar-me da cama para buscar um copo d’água, passando pela janela ao fim do corredor, olhei pela vidraça a noite limpa e testemunhei uma estrela mudando de lugar.
Linda, a cena! Fazia um tempão que não via uma daquelas.
E aquilo me deu uma pontinha de alegria, afinal, o exercício do viver ainda nos oferece pequenos e grandes milagres de grande beleza. Só é preciso que estejamos atentos.
Um segundo é precioso demais.
Coisas grandiosas acontecem em um segundo, pensei com meus botões. E coisas banais, também, não sejamos tão poeticamente ingênuos.
E foi assim que eu fiquei ali, debruçado sobre o parapeito da janela, meio insone, meio acordado, meio dormindo, meio despertado, namorando aquela estrela e pondo-me a imaginar que, naquele exato segundo em que ela se deslocara, em algum lugar do mundo uma nova vida nascia.
E que, naquele mesmo segundo, no hemisfério oposto, uma pessoa respirava pela última vez.
Naquele exato momento, em algum lugar do mundo alguém comia um pedaço de pão.
Alguém sentia fome.
Um outro não tinha o que comer.
Naquele exato segundo, em algum quadrante de algum lugar, alguém fazia sexo.
Alguém penava com a solidão.
Alguém se frustrava.
Alguém dizia não.
Alguém pensava em alguém, que talvez pensasse noutro alguém.
Alguém sentia frio.
Alguém se banhava no mar.
Alguém viajava num táxi.
No instante em que aquela estrela fugidia de uma noite de dezembro mudava de lugar, uma mulher era humilhada e uma outra se libertava de sua maldição.
Naquele exato segundo uma criança era negligenciada.
Num outro lugar, uma outra brincava de videogame.
E uma terceira não tinha com o que brincar.
Em algum lugar da Terra alguém usava o banheiro. Alguém tinha náusea. Alguém bebia café.
Alguém se drogava com barbitúricos.
Alguém rezava.
Alguém pintava os lábios de batom.
Em alguma paisagem do mundo uma pessoa sentia a chuva molhar seus cabelos sem imaginar que, longe dali, uma outra tostava por prazer a sua pele ao sol.
Naquele exato segundo, em algum lugar, alguém buscava a cura para uma doença, enquanto uma outra pessoa tentava criar um vírus capaz de destruir milhões.
Em algum lugar alguém vendia armas.
Alguém vendia drogas.
Alguém vendia a salvação.
Naquele momento, em algum lugar do mundo, um escritor escrevia uma crônica sem grandes atrativos ou maiores novidades.
E alguém lia.
Naquele segundo.
Em algum lugar do mundo.
Via-se da janela uma estrela mudando de lugar.

*

Foto:
O Engolidor de Pombos da Plaza de las Palomas, San Juan, Puerto Rico
A Música Que Toca Sem Parar:
Madredeus e A Banda Cósmica, Vou (Larga o Navio)

28 comments:

Anonymous said...

A estrela é total atrativo, e ler-te também, meu caro.

Que belo escrito.

Beijo!

Unknown said...

Quero horas a mais, quem sabe décadas. Aliás o único cara que se conforma com segundos é o Barrichelo, rá,rá, imitando o macaco Simão. Gostei da nova fase das cronicas com retratos, o cronista se desvela. Abração.

Sylvia Araujo said...

Concomitantemente os mundos giram, as coisas acontecem, os sentimentos calam e falam. Tudo ao mesmo tempo, em um único segundo, aquele mesmo segundo em que fico insone pensando em tudo isso.

Beijo, querido.

Anonymous said...

Tempo tempo tempo tempo (diria Caetano...)

Érre, nessa loucura dos nossos dias, em que o tempo é mesmo relativo - um dia pode passar em um segundo e uma semana pnão vale mais do que um dia.
Tanta coisa passa sem que a gente se dê conta...
Tenho feito um exercício diário de me dar uns segundos antes de começar o dia.
Notívaga incurável, meu compromisso maternal agora me faz acordar às 6 da matina pra preparar meu filho pra escola.
Tarefa dura pra quem vai dormir às 2h... e pra quem às 6h, praticamente acabou de se aninhar nos braços de Morfeu.
Mas tenho feito esse exercício de parar alguns segundos na varanda do meu apartamento (moro no 21º andar...) pra assistir à chegada do dia. Ali sou eu e o dia se preparando pra acontecer. Faço questão de eliminar os prédios no horizonte, por minha própria conta e risco. E olha... quanta coisa passa dentro da gente em alguns segundos... Tempo mágico esse, profundo... um salto triplo carpado pra dentro de mim.
As urgências logo puxam a gente pelo pé e São Paulo cê sabe que é ótimo nisso... mas vou te falar: esses segundos fazem a diferença.

Beijo
Diubs
PS: Adorei o engolidor de pombos. Cê não tava de regime?

Amar sem sofrer na Adolescência said...

Reli várias vezes o seu perfil e me vi, e me identifiquei, e fiquei emocionada, mas ainda não aprendi a me descrever assim. Fiquei mais um tempo e li vários posts. Com certeza, voltarei outras vezes.
Bjs

Primeira Pessoa said...

diubs,
como disse tão brilhantemente a líria porto (minha poeta favorita... mais até que adélia prado...rs), um dias às vezes custa a passar, mas a vida é breve (algo assim).
eu de regime?
uai, nunca ouviu falar na dieta dos pombos?
só como pombos! o ozzie osbourne, morcegos...
estamos na moda.
rs...

quando é que a gente se vê?
saudades d'ocê, pangaroa.

beijos
R.

Tania regina Contreiras said...

Que texto gostoso de ler! Aqui somos fisgados já no perfil, que se descrever assim não é pra qualquer um. Depois veio esse devanear sobre o segundo, que...bom, dá licença que vou ler mais por aqui, depois eu sigo, mas agora quero mesmo é ler o que já adivinho ser muito bom.

Abraços

Primeira Pessoa said...

stella,
os iguais convergem. vem daí a empatia.
fico honrado com sua visita e te visitarei em seu blog, sim.

abraço grande do
roberto.

Primeira Pessoa said...

sylvia,
pensamos...
logo sofremos..rs

ainda bem, né?

beijão do
roberto.

Primeira Pessoa said...

assis,
dividi a vida em quatro estações, no outro dia, e concluí que o outono avança rapidamente sobre mim.
como naquela canção de belchior, chegou "como um sol num quintal"...

desde então, parei de torcer pra uma determinada semana passar depressa, ou pra um dia difícil chegar ao seu final.
isto é uma forma de suicídio.

abração, poeta.

Primeira Pessoa said...

larinha,
atração mesmo é receber meus amigos queridos neste cantinho. é interagir com eles, trocar afagos, dois dedinhos de prosa...

quando cês nào aparecem, fico tristim, tristim...

beijão,
R.

Primeira Pessoa said...

uai, tânia, cê escreve assim e começo a pensar que acertei a mão...rs
falando sério, sérissimo, o grande barato deste blog é o pessoal que aqui vem, interage, fica se conhecendo e passa a trocar palavras (poesia, prosa, elogios, afagos verbais e congêneres...rs)... r o cordão só aumenta... já somos mais de cem.
um dia seremos milhares e te convido a fazer parte deste grupo.
seja bem vinda!

abração do
roberto.

Júlio Castellain said...

...
É, Roberto.
Alguém lê.
Abraços.
...

Primeira Pessoa said...

(rindo muito)
uai, julio, é você quem lê?

encontrei! rs
até que enfim, encontrei!
abração, poeta!

CANTO GERAL DO BRASIL (e outros cantos) said...

Delima,
Todo dia cantarolo aquela canção do Beto Guedes na parte que ensina assim:
"Tempo, quero viver mais duzentos anos..."
Feliz de estar sempre aqui, onde os ponteiros deslizam depressa. Quando me dou conta, já viajei léguas em tuas páginas, e a vontade é viajar sempre mais. Em boa companhia vou a pé até à Sé...

Fã de estar sempre entre os teus,
Ramúcio.

Primeira Pessoa said...

uai, da rama...
mas eu sou dos seus...
e vice-versa.

mum é não?
num sêmo, não?

uai... sêmo, sim!

abração,
R.

Anonymous said...

Quandé que a gente se vê? Uai, panguá... niquando?
Também tô querendo saber demais...
Hoje li um trem bonitinho do Rubem Alves: "Saudade é o bolso onde a alma guarda aquilo que ela provou e aprovou..."
Nossa amizade foi provada e aprovada no mesmíssimo instante. Láááá quando eu te salvei de uma crise de asma e quase te matei de taquicardia. Ali a coisa já ficou selada.
Agora além da asma, eu tenho um bolso cheio de saudade e pra essa a gente vai tomando remedim homeopático, de gotinha aqui na "ternete" até poder tomar aos "golo" na mesa de um boteco.
E "niquando" que vai ser isso? hein panguá?
Beijo procê
Diubs

Natalia Astuácas said...

Gracias Roberto por tu visita y cometario.

Muito obrigado.
Beijos y abraços.

Primeira Pessoa said...

Diubs,
fiquei tristim em fevereiro, quando ce teve que mandar o lima pro recital na casa de zé pãozim. hoje eu já posso "cramá"...

foi uma das noites mais bonitas de minha história recente (acordei sem ressaca no day after... rs) e tenho a líria como testemunha (num é não, lírica?!).

vamos ajeitar pro segundo semestre.
to achando aquela ida anual ao Lua Nova meio improvável, pelas suas novas obrigações e restrições de tempo. mas armemos em bh.

aí cê leva o toni, o alê, a gente emenda com final de semana e os franguinhos que se escondam, pois no quintal da casa de meu pai tem quiabo pra mais de metro.

e anguzim é trem facim de fazer. e o que mais tem é fubá.

e um arroizim branco... feijão mulatim...

pinga de alambique.
poesia na ponta da língua. cantigas e causos caipiras de monte, dentro do imborná.

viola afinada. prosa afiada. amizade da boa.

vai ter cantoria? vai tê sim sinhô!!!

ah, e cervejota estupendamente gelada, que ninguém é de ferro.

qué mió?
só na casa de zé pãozim, diubs!
e é pra lá que tâmo ino...rs

(baixou o jeca tatu nimim...ou, o chico bento, sei lá,,, rs)

beijão, maninha!

ah, sim... cê quase me matô, mas me sarvô numa mesma frase...rs
qué maneira mió de iniciá uma amizade?

beijão,
do érre.

Primeira Pessoa said...

natália,
vou caprichar no portuñol.
bienvenida ao primeira pessoa, que ahora se queda internacional com sua presencia... :-)

muchas gracis. muito obrigado.
seguimos hablando e falando por aqui e por aí, em su blog.
portuñol daqui pra aí. espanguês daí pra cá... : -)

e vamos nos compreendendo.

abraço grande do
roberto.


ps: seu blog é muito bonito, moderno, cheio de bossas... gostei e voltarei por lá. não sei traduzir isto que acabo de lhe escrever... ;-)

Chá das Cinco said...

NAQUELE LUGAR...

Aqui estou lendo o teu blog, em algum lugar você está....
Adorei, fiquei um bom tempo degustando as tuas palavras.

Abraços da tua nova seguidora

Gemária Sampaio

Primeira Pessoa said...

gemária,
pena eu não ter sequer um cafezinho pra te servir (rs).
mas a casa é sua.
faça-se nela.

bem vinda!

abração do
roberto.

Anonymous said...

Só uma retificação... Lua Nova tá firme - ninguém derruba "nóis"... Como diria o outro: "nóis capota mas não breca".

Embora fechando um tiquinho mais cedo (que a cada domingo o Toninho faz questão de alargar um tantinho mais e imagino que lá pra julho ele já esteja de novo fechando às seis da matina....) - continuamos firmes tooodo santo domingo.
Nós, a cantoria, os mé, e Santa Cecília que fica lá penduradinha na parede sem acreditar no lugar que ela foi parar.

Mas quando cê vier, com parada em Sampa ou não, tô garrada no Zé Pãozim...

Beijo grande
Diubs

Marcantonio said...

É, costumo ficar pasmo ao pensar na simultaneidade dos eventos; como se o mundo não pudesse acontecer distante de mim; como se eu fosse um Argos com cem olhos míopes, pretendendo testemunhar tudo para certificar existências. Mas aquela árvore no pátio existe sim, ainda que eu não pense nela. A verdade é que o meu narcisismo frouxo, meu supostos valores absolutos, não resistem a uma olhada nesse absurdo céu noturno, oceano suspenso e invertido. É quando me sinto (ainda eu mesmo)um inseto pendurado no parapeito da janela, mas, por breve instante, restituído ao todo.
Vá desculpando a filosofia de almanaque, mas esse seu texto me deixou meio besta. Assim como aquela estrela ele muda de lugar, vai, surpreendente, da prosa à poesia.

Um abraço.

Jorge Pimenta said...

Roberto, esta crónica é inquietante... diria que inquietantemente bela! Como é um prazer degustar as trivialidades transformadas na pedra-de-toque existencial com que tocas as coisas...
Um abraço!

P.S. Já falei com a Laura (do Im.possibilidade) sobre os Trovante. Se vieres cá, quem sabe não vamos os três por aí abaixo.

Primeira Pessoa said...

jorge,
ver a reunião dos trovante é tudo o que quero.
to me descabelando pra ver se consigo ir. é algo que talvez não se repita. daí a urg6encia.
to esperançoso.

seria genial assistir na companhia de voc6es.

abraçào do
roberto.

Primeira Pessoa said...

marcantonio,
filosofar é preciso.
seja de almanaque. seja de botequim. seja da porta da igreja.
seja de dentro da fábrica.

rubem braga, de quem sou grande admirador, conseguia como poucos, prosear salpicando de poesia os seus textos.
to tentando aprender. e lá se vão longos vinte anos.

abração, marcantônio.
abração!

ana p said...

Basta um segundo...para uma palavra...
Bj