Friday, June 4, 2010

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Dois Poemas de Sérgio Xarepe


Olho os amigos como quem se despede,
uma vez por dia. Olho-os para que não os esqueça,
para que se guardem as suas imagens dentro
das pálpebras.

Hoje chove porque me esqueço aos poucos
de onde vieram. Termino o dia pensando neles,
nos amigos.

E as suas palavras realçam-me as
marcas que tenho pelo corpo, erguem-se
pelas mãos as suas vozes quando todos
os outros se calam

falam como amigos.

O corpo é uma febre conjunta - como que se
estendesse pela memória o desenho de um
país que se guarda na algibeira ao partir - e
continuo a partir daqui, onde os barcos viajam,
onde as gaivotas chilream

enquanto o sal se estende pelas minhas
narinas.

O vento alarga-me a roupa que se
moldou ao sabor dos dias. Penso no hoje e ele
raia-se pelo rio, surgem palavras de apreço
pelas luzes pelas ruas


e os amigos soltam-se de nós

Como uma prisão de espuma. São um momento
em que a fome se torna grande demais para os olhos,
onde tudo o que jaz à nossa volta é efémero

perduram como pequenas árvores em torno
de nós.

Devolvo-lhes um tempo de cada vez. Restítuo ao
que foram o peso das letras e dos campos - respirámos,
em espaços, o mesmo ar.

É quando se nos cresce um soluço pela garganta
que vemos - a chuva nada mais é que um som
- aí lembramos aos amigos o que somos


e porque os olho com o volume da despedida nas mãos.

- "Em lugar das mãos o mundo."




Esta cidade que habita.

Existe um rasto de silêncio pelas
ruas desta cidade onde moro. O meu corpo
tece horas já e nada se apaga como antes.

Onde estou, o frio é incessante e
às minhas mãos queimam-se fotografias como
se o passado não existisse mais.

De hoje em diante, irei apagar-me
em cada dia, para que nada reste dentro de mim
ou dentro da garrafa vazia.

Por isso te vejo a desaparecer
rapidamente, como um dente-de-leão ao vento
da minha voz, ao agredir-te sem que te
doa ou marque para sempre.

E para que os dias passem, bebo-me
de dentro das mãos. Como um vinho verde
que me corre no corpo e assim a visão do mundo
é mais carente - o frio que sinto é da
cidade.

Nada mais existe por aqui que me prenda
ou que me faça ficar. Visto a mala para
pensar na partida, carrego-me pela porta até
ao jardim que se estende lá fora, sem luz sem sol
nem calor.

Os meus pés já não caminham porque
não sabem. Porque todas as cartas me ensinaram
que a maneira como se pisa um ladrilho é igual
à de pisar um rosto

mesmo que de tal não se goste.

Por isso perco os sentidos nesta cidade
sem polícia e sem refúgios - como se fosse eu
o último a perder-me nas ruas labirínticas e
planas onde o vento me espalha a memória como
água em papel.


Sérgio Xarepe é um dos novos expoentes da nova poesia portuguesa. Lançou, recentemente, Outros Dias Existem Muitos

A Música Que Toca sem Parar:
Fátima Guedes, Flor de Ir Embora, de sua autoria.

40 comments:

Zélia Guardiano said...

Roberto
Fiquei uns poucos dias embrenhada no mato, sem energia elétrica e etc.
Quando, cheia de saudade, volto aqui, encontro essa maravilha toda...
Obrigada, por dividir comigo o seu tesouro.
Enorme abraço, meu grande amigo!

Lídia Borges said...

Tenho de confessar que esta poesia me tocou de forma especial.
Obrigada.
Vou tentar conhecer melhor.

L.B.

Impulsiva said...

Simplesmente GENIAL, os dois, mas o primeiro me tocou em especial, lembrei-me dos grandes amigos que se vão...ou se distanciam sem que haja motivos, ou explicação, então culpamos a vida, a rotina, a distância.

"e porque os olho com o volume da despedida nas mãos.

- "Em lugar das mãos o mundo."

(lindo)

Ótima dica, o cara é bom, confesso nunca ouvi falar.
Por isso que é bom vir em blogs como o seu, rsrs. Obrigada!

Beijos,
Kenia.

Unknown said...

poesia, flor, paisagem, ir embora ou ficar, fincar raízes no caminho, um pouco se deixando um pouco partindo,

abração

Júlio Castellain said...

...
Parabéns pela escolha.
Meu abraço.
...

Tania regina Contreiras said...

Prazer em ler o poeta, que não conhecia, e é bom, e de ouvir o Flor de Ir Embora, a Fátima Guedes, que faz tempo não ouço.
Valeram, versos e música!
Abraços,
Tânia

Jorge Pimenta said...

foi pela tua mão que li, pela primeira vez, sérgio xarepe. tocou-me tão especialmente que, naquela actividade em que poemas cresciam nos lugares mais imprevistos da minha escola (e que no meu blogue relatei), incluí um texto seu. é, na verdade, alguém com uma sensibilidade e uma força imagética muito singular. nesta incursão pelo universo da amizade, é-nos possível ver o que aproxima e aparta, o que é essência e periferia.
belíssima, escolha, primeiríssima pessoa!
um grande abraço!

Primeira Pessoa said...

jorgíssimo,
há quem diga que sérgio "copia" deslavadamente al berto. sim, vejo similaridades estéticas, mas as coisas do sentir, dois universos sensíveis, mas distintos.
no outro dia o xarepe deixou um recadinho aqui no blog, agradecendo a postagem. achei simpático.
ele publicou um livro aí em PT, que acho até que dá pra comprar pela internet. "outros dias existem muitos"

acordei no meio da noite (sao 4:30 da manhã e desci pra beber agua. perdi o sono e vim pro blog...
achei o sono.
subirei.

beijo grande, procê que transforma braga, todos os dias, numa espécie de capital da poesia...rs

Primeira Pessoa said...

tania,
tava com saudade d'ocê...rs
senti sua falta aqui no blog.
fátima guedes é de um talento, de um bom gosto.... delicada, canta certo, as palavras certas... e mesmo sem nenhum vozeirão virtuoso, não desafina, desliza habilidosamente pela canção... e compõe maravilhosamente bem.
o brasil é muito injusto com seus talentos.
beijos, tania!

Primeira Pessoa said...

toda vez que ce passa aqui, julio, cê acende uma estrela.
abração procê!

Primeira Pessoa said...

assis, um pedaço de mim ja foi, sabia?
não sei pra onde, mas já foi... sinto aqui, ó... no músculo da emoção... e dá essa nostalgia feladaputa...
já percebeu o quanto nós, homens e mulheres do mundo somos frágeis?
e bh? vai rolar?

abraço imenso.

Primeira Pessoa said...

kenia,
eu tambem nao conhecia o sergio xarepe até muito pouco tempo atrás.
é jovem, como você.
ambos, cheios de vida pela frente.
voce encontra muita coisa dele espalhada pela blogosfera.
vai no "guga".... que cê acha aos montes.

abraço ensonado deste que se perdeu do salutar hábito de dormitar.

roberto.

Primeira Pessoa said...

lídia, querida, fico muito feliz de lê-la aqui no blog.
é como se estivesse revendo um amigo querido.
sua presença me traz isto.

beijão pra você, que curte como se deve, os versos e as prosas destes artesãos do sentir.

r.

Primeira Pessoa said...

zélia, minha casa, sua casa...
meu tesouro, seu tesouro...
seja mais que bem vinda.

cê sabe que nessa "casa" tem um quarto só seu, com roupa de cama limpinha e uma janela de onde se vê, ao longe, montanha e mar.

beijo grande do
r.

Andy said...

Não conhecia este poeta, gostei muitíssimo!
Obg pela partilha. Beijinho!

M.C.L.M said...

"É quando se nos cresce um soluço pela garganta
que vemos - a chuva nada mais é que um som
- aí lembramos aos amigos o que somos

e porque os olho com o volume da despedida nas mãos.

- "Em lugar das mãos o mundo."

Lindíssimo texto, não conhecia o autor, reflexão singular como esta, fez marejar meus olhos, ainda mais por estar tão longe de todos os meus amigos de Sampa e do mundo...

abs...

Paulo Jorge Dumaresq said...

Amigos e ruas
E versos que dizem assim:
"Os meus pés já não caminham porque
não sabem. Porque todas as cartas me ensinaram
que a maneira como se pisa um ladrilho é igual
à de pisar um rosto".
Meu bom Roberto, a poesia do tal Sérgio Xarepe não é um xarope.
Pelo contrário.
É poesia mais maior de grande.
Outra grande descoberta minha oriunda dos Portugais pelo vosso Primeira Pessoa.
Obrigado e beijo na alma, caro amigo.

Primeira Pessoa said...

paulo poeta... sérgio canhoto xarepe... esse é o cara... já nasceu gauche, com o software da emoção instalado no lugar certo... devidamente conectado à ponta de seus dedos... daí a facilidade de colocar no papel (no monitor)... neste buraco negro da blogosfera aquilo que traduz também os nossos sentimentos...

bom te ver aqui, poeta do potengi.

Tania regina Contreiras said...

Pois não é, menino, uma injustiça grande com a Fátima Guedes? Gosto muitíssimo da voz dela, canta intimamente, é singular. Faz tempo que não a ouvia.
"Quem de vocês se chama João?
Eu vim avisar, a mulher dele deu a luz
sozinha no barracão...."

abraços,Roberto

Primeira Pessoa said...

márcia,
no outro dia uma pessoa me disse que saí de minas, mas minas nunca saiu de mim.
e é a mais pura verdade. jamais perdi meu sotaque de jeca, meu apego às coisas da chuva, das montanhas, da poeira, das águas do rio...
devo ter cheiro de pão de queijo.

tenho saudade, sempre.
e já se passaram 26 anos.

migrar, emigrar... sair do lugar é sempre aquela sensação do rodopio de um peão...

abraço grande pro'cê.
r.

Primeira Pessoa said...

andy,
esse é mais um dos bons nomes da nova poesia portuguesa (também gosto bastante das coisas de ana salomé, uma menina com a alma aflorando... tem aqueles olhos de chuva, sabe?)

é bom ir descobrindo esta turba. e ir divulgando para os mais atentos.

abraço grande e meus votos de um bom final de semana aí no antigo (e lindo) portugal.

roberto.

Adriana Riess Karnal said...

os portugueses fazem a língua valer a pena.lindo!

Primeira Pessoa said...

eles inventaram esta língua complicada e linda... é natural que dominem todos os seus misterios, cada recôndito lugar...
bom te ver por aqui, adriana.

abração do roberto.

Primeira Pessoa said...

tania,
lembro-me tão bem desta canção num daqueles festivais do início dos noventa na Globo... chama-se "Mais Uma Boca"... e eu a tenho em meus arquivos... se quiser, posso te mandar... trata-se de umas daquelas tragédias de morro, de periferia, contada e cantada com maestria...

passou um filme na minha frente, aqui, agora...

beijão procê.

Andy said...

Gosto da expressão "olhos de chuva"
Bom domingo!

Tania regina Contreiras said...

Ah, Roberto, quero sim, manda pra cá. Nem lembrava o nome da canção, mas ela canta divinamente, uma interpretação fantástica.

Abraço,
Tânia

Primeira Pessoa said...

tania,
eu mando na segunda, do jornal.
meu arquivo de musicas ta nos computadores de lá. me aguarde.

beijo grandão assim, ó....!!!!!

deste
roberto.

Andrea de Godoy Neto said...

Roberto, que coisa linda esses poemas!
eu, que adoro a poesia portuguesa, não conhecia esse menino, obrigada por apresentá-lo!

chegar aqui tem sido sempre uma grata descoberta...êita coisa boa, hein?

e essa música, nossaaa, há quanto tempo...bom sentir assim, meu arquivo de lembranças revirado, trazendo à tona o que é bom

um abraço pra ti

Primeira Pessoa said...

andy...
to querendo escrever uma conica lusitana chamada olhos de cais... aquele olhar de despedida que acompanha as pessoas aos portos, aeroportos, estações de comboio... aqueles olhos de despedida...
aguarde...

olhos de chuva? bonito também.

abração do
roberto.

Primeira Pessoa said...

andrea,
o baú aqui é bem fundo...rs
escutar fátima guedes em todo o seu explendor e depois de tanto tempo, acendeu uma chama em mim...
ou reacendeu, sei lá eu...rs
ficou aquela vontade de partir, de ir , de repente, pra dentro de mim mesmo... aquelas coisas que nem pink floyd explica...

sua presença aqui, sempre motivo de alegria pra mim.
sei que cê sabe disto.

beijão do
roberto.

ps: to devendo as musiquinhas... esqueci não...

líria porto said...

essa coisa de amigo é um trem descarrilhado de emoção! ainda mais se a fátima guedes faz o fundo...
besossssssssssssssss

líria porto said...

voltei só pra te falar - se eu tivesse na idade de ter filho ia ter um - só pra te chamar pra meu cumpadi... risos
besos

Primeira Pessoa said...

uai, lírica... você que já me deu poema...
putz... e um bacuri (ou bacuria) pra batizar... pelamor de jesuscristim... aí fechava a boca do saco...

seria a glória mais gloriosa...
e nem precisava ter a fatima guedes fazendo o nosso fundo musical.

e, quer saber?
aceito ser seu cumpadi mesmo assim. mesmo sem bacuri ou bacuria pra nos legitimar cumpadis...

cê topa??? rs

beijão de um ainda ressaqueado.
r.

ps: vieram uns amigos pra cá, ontem, e passei o dia grelhando e bebericando (não necessariamente nessa ordem) no quintal.
fiz uns espetinhos de frango à moda do cairo (temperado com cardamomo, curry, tumeric, mostarda em pó e yogurt), umas tiras da barriga (é uns torresmão de meio centimetro de largura, por um palmo e meio de cumprimento...só que na brasa... imagina um baconzão sem defumar, bem grossinho)... linguiça polaca e picanha (que, confesso, não fez sucesso)...
nem molhei o pé na piscina. mas devo ter tomado mais de meia dúzia (rs). quantas? uai, sei lá eu... numsilembro...rs
mas se cê tivesse vindo eu teria me comportado melhor. bem melhor.

líria porto said...

parece que bebo - mandei uma mensagem, não sei se foi... releva, cumpadi...
besos

Primeira Pessoa said...

não sei sei veio... se veio, não vi, lírica...
relevar?
revelo.


beijos,
r.

M.C.L.M said...

Meu caro, deixei MG aos 12 anos de idade, mas ela jamais me deixou...
E pão de queijo, vixe, sem eles num sou ninguêm sô...

beijo! Pão de queijo, bolo de fubá...não necessariamente nesta ordem... :-)

Primeira Pessoa said...

marcia,
compartilhemos poemas como quem reparte um pedaço de pão.
e viva sérgio xarepe, artesão de versos de grande talento.

e viva a você. viva a nóis...rs
ah, e viva o pão de queijo... e viva o bolo de fubá!

viva!

ana p said...

Este rapaz escreve muito bem...já o leio ha algum tempo e gosto cada vez mais...
Beijo

Primeira Pessoa said...

... e o fã-clube de sérgio xarepe cada vez aumenta mais.
estou entre estes que o admiram.

abração, magnólia.

Anonymous said...

A foto devia vir com aviso prévio que pode toldar a leitura dos poemas. Escreve bem sim, mas muitos clichês. As ruas, as garrafas, os cigarros... estou a falar de tudo o que conheço da escrita dele. A poesia está em sentir tudo, de todas as maneiras e sem anestesia. A isso chama-se maturidade, coragem, o que quiserem. Há que continuar a escrever e melhorar. Nunca sufocar o que se sente verdadeiramente.