Sunday, January 10, 2010


















Alencar, o rei da mentira
É claro que já menti nessa vida, mas nunca disse um ‘eu te amo’ que não tivesse sido verdadeiro. Cazuza dizia que mentiras sinceras lhe interessavam. Escorados nesse mote, muitos de meu convívio demoraram a acordar para uma realidade melhor. Outros continuaram dormindo.
À medida que fui amadurecendo, passei a evitar os pequenos deslizes. Mentir por mentir, jamais. Mas tem gente que mente por costume e o faz de tal maneira, que as mentiras se transformam em doentias verdades. São os casos patológicos.
Estes não aprenderam ainda que a verdade é tinta permanente.
É cinzel esculpindo na pedra.
Já a mentira é um paliativo.
É o rabisco da vara na areia.
E não apenas o antônimo da verdade.
A verdade pode machucar, é ferro em brasa, que marca para sempre o couro do gado.
Mas a mentira vai mais fundo, tem vocação de punhal.
A verdade pode provocar dor, mas com o tempo traz alívio e luz.
A mentira, não.
Com a mentira vem o rancor, a quebra da confiança e o desprezo.
Que fique claro: mentir e omitir são duas coisas completamente diferentes.
A omissão pode ser uma atitude com resquícios de covardia.
Mas a mentira é 100% covarde.
Conheci muito mentiroso nessa vida. Mas nenhum com a eloqüência e a cara-de-pau de um caminhoneiro de São Raimundo, o Alencar.
Mentia para impressionar, ou para tirar vantagem de situações completamente irrelevantes. A maior parte do que falava era ficção barata.
Segundo seus relatos, havia percorrido o trecho Valadares - Belo Horizonte, 360 quilômetros de estrada esburacada e perigosa em fantásticas três horas. E com o caminhão cheio de bois.
Num outro dia, aparecia no bar, pagava cachaça para todo mundo e dizia que estava comemorando os treze pontos feitos na loteria esportiva. O tempo passava e ele continuava vivendo de aluguel e comprando fiado no armazém de Zé Barbudo.
Segundo Alencar, o pára-choque amassado de seu caminhão era a prova material de que havia atropelado uma onça enorme, quase chegando a São Paulo. “Não deu para aproveitar nem o couro”, fartava-se de repetir.
Se viajava ao Rio, dizia ter almoçado na casa de Roberto Carlos e era amigo de Zico, do Flamengo. Era o rubro-negro, o rapaz. E gostava de música romântica.
Com o passar do tempo, ficou estigmatizado e ninguém mais acreditava nele.
Como começaram a ignorá-lo, resolveu se assumir mentiroso e mandou pintar, com as cores do Mengão, nos dois pára-lamas traseiros de seu caminhão Mercedes 1113, os seguintes dizeres:
Alencar, o rei da mentira!
E foi acolhido de volta.
Em todo lugar onde estivesse, a roda se fechava em torno dele e as estórias fantásticas eram garantia de entretenimento. Afinal, Alencar tinha um tio astronauta que fora à lua duas vezes, um primo que namorara a miss Brasil (uma certa Marta Rocha), e um conhecido que estudara com o ex-presidente Getúlio Vargas.
Não raro, mentia atendendo a pedidos.
Numa destas ocasiões, cruzou com a viatura da polícia rodoviária na entrada de um posto de gasolina. Os dois carros ficaram lado a lado e um patrulheiro pediu:
- Ô Alencar, conta uma mentirinha aí.
Alencar pediu desculpas, mas disse que não podia.
- Estou indo pedir socorro em Valadares. Teve um acidente a 30 quilômetros daqui e tem gente ferida espalhada pelos dois lados da estrada.
Os patrulheiros nem se despediram. Ligaram as sirenes e seguiram, em alta velocidade, na direção do horrível acidente.
Duas horas depois retornaram ao posto de gasolina e lá estava o Alencar, comendo uma picanha e bebendo uma Brahma bem gelada com outros dois caminhoneiros.
Um dos patrulheiros foi até a mesa e, de dedo em riste, mandou o seu recado nervoso:
- Escuta aqui, Alencar! Dessa vez você passou dos limites! Que brincadeira de mau gosto foi essa de dizer que tem um acidente cheio de mortos e feridos perto daqui?!
Alencar deu uma garfada na parte gorda da picanha e respondeu, impávido:
Uai, mas você não pediu para eu contra uma mentira?
E todos caíram na gargalhada.
Ninguém imaginou, no entanto, que Alencar ainda pagaria caro pelo seu estilo de vida.
Numa madrugada, acordou a mulher e disse que estava enfartando. A patroa ajeitou melhor o travesseiro, resmungou qualquer coisa e continuou a dormir.
Dois dias depois ele foi enterrado, humildemente, sem as pompas normalmente reservadas a um rei.

23 comments:

Anonymous said...

:-)!
Se me permite, uma versão do Pedro e do lobo, muito bem escrita.
Abraço.

Anonymous said...

Que composição estrondosa ! Ensina uma grande lição, sem dúvida. É quase como a história do Pedro e do Lobo. Homens sempre pregando mentiras, quando falam sério, custa crer e saem-se mal. É a ironia dos destinos, a própria ironia deles próprios.
Lindíssimo.

(Bem sei que o Brasil é um Mundo, com vários mundinhos. Mas eu sou cidadã do Mundo e sei, felizmente, que seria bem recebida. Partilhamos, nós portugueses e brasileiros, bem mais que a nossa língua linda, e ainda bem!)

Adorei:

«Estes não aprenderam ainda que a verdade é tinta permanente.
É cinzel esculpindo na pedra.
Já a mentira é um paliativo.
É o rabisco da vara na areia.
E não apenas o antônimo da verdade.»

Fascinante ! Genial, Roberto.

Sofia, abraço triplo.

Anonymous said...

Quero ficar com você ? Do Caetano ?
Dos meus artistas/canções preferidos. Excelente ! Absolutamente linda a música.

Sofia.

Paulo Jorge Dumaresq said...

Roberto, Alencar deve ter aprendido a mentir com Goebbels. Abs.

Primeira Pessoa said...

Laura,
você, como sempre, tão gentil.
Suas palavras são um buquê nesta manhã brutalmente fria de New Jersey.
Por alguns segundos, deixei de sentir frio.

Ficou tudo morno por aqui.
Obrigado.
Abração do
Roberto.

Primeira Pessoa said...

Sofia,
grato pelo carinho. Assim eu começo bem a minha semana.
Brasileiros e portugueses comungam da mesma história. vai além da língua e da genética.
Adoro Portugal. Tenho uma imensa admiração pelo país. Um grande respeito.
Sim, a canção é de Caetano, mas aqui é cantada por Renato Braz, uma das mais belas vozes do Brasil.
Caso queira, mande-me seu email, que compartilho o mp3 da canção com você.
Abraço grande do

Roberto.

Primeira Pessoa said...

Paulo,
pode ser (rs)...
Mentira é um trem medonho. Dizem que mentir e coçar, é só começar...
Mas acho que a verdade é como chá de boldo. Amarga a boca quando ingerida, mas só faz bem ao corpo após absorvida pelo organismo.

Abraço amigo do
Roberto.

Unknown said...

Bom, bom, bom. Cronica com sabor de prosa mineira. Como se diz aqui na Bahia: é de torar. Abraço.

Primeira Pessoa said...

Assis,
só de você ter gostado, já me dou por feliz.
Mineiro tem essa coisa de contar causos, né?
De torar eu não conhecia. Muito bom.
Abração do

Roberto.

líria porto said...

adoro um causo, tu sabes - e nem precisa ser verdadeiro! tuas crônicas são bótimas!

o mentiroso da minha meninice era o raurréu... ah, tinha também o torrezão!!!

tenho um poeminha sobre - lavai:

pua
líria porto

não queres saber não perguntes
respostas podem ferir-nos
revelar-nos minúcias

verdade é ponta de lança

*
besosssssssssss

Primeira Pessoa said...

Alencar existiu, sim, Líria.
lá vai mais um punhado de sal. Prestenção:
há uns dois anos recebi um telefonema no jornal. Havia publicado esta crônica na semana anterior e uma pessoa se dizendo "filho do Alencar" queria falar comigo.
atendi.
sim, o filho do homem havia emigrado pros EUA e leu, emocionado, a crônica sobre o pai.
e ligou para "agradecer".
e ele ainda me disse:
"meu pai não mentia por mal".

achei tão bonitinho.

é a mais pura verdade,.
beijão, poeta iluminada.

do

roberto.

Anonymous said...

Mentirosa ou não, sua história é muito interessante. Parece conto de mineiro, e olha que sou filha de mineiros, conheço esse povo, hehehe...

Muito legal, Roberto! Conheço um mentiroso assim, geralmente a gente ri dele, mas às vezes dá raiva quando ele insiste em dizer que é verdade. Poxa, tem de assumir logo, igual ao Alencar aí.
=)

Beijos, boa semana!

ana p said...

Adoro as tuas histórias...
Beijo

Primeira Pessoa said...

Uai, e é causo de mineiro, sim.
Não se é mineiro impunemente, Lara.
A mentira machuca muito mais que a verdade. Isso eu aprendi.
Alencar se assumiu e foi perdoado.
E ganhou até homenagem.
O perdão é uma forma de amor, sabia?
É assim na vida.

Abração do
Roberto.

Primeira Pessoa said...

Magnólia,
fico feliz que tenha gostado. Te ter aqui é sempre um luxo.
Abração do

Roberto.

líria porto said...

essa musga pega direto no meu figo - eu a estava digitando na hora exata do 11 de setembro - agora vê!

besos

Primeira Pessoa said...

Qual "musga", Líria?
a do caetano (que foi ao ar e perdeu o lugar?), ou esse poema do Vinicius, cantado pelos Secos e Molhados?
Beijão do
Roberto.

Anonymous said...

Ah Roberto agradeço muito mas já andei a pesquisar e já pedi a um amigo, que me arranja quase tudo, musicalmente falando, e ele já enviou esta linda versão do Renato. Na verdade, a letra já constrói a música por si só, mas com a voz do Renato Bráz fica um espanto ainda maior ! E a do Caetano já é maravilha!

Muito obrigada Roberto ! Uma boa semana...e boas crónicas, criações, poemas e musiquetas bonitas !

Sofia.

Primeira Pessoa said...

Que bom, Sofia.
Renato é um grande artista e seus discos são muito bons. E ele só canta o que o coração dele manda.
Se você viajar um pouquinho abaixo neste blog encontrará uma crônica (a música que toca sem parar) em que conto uma ida com Renato ao estádio de futebol.
Mais que um amigo, Renato é um irmão. Tenho muito orgulho de tê-lo em minha vida.
Aliás, brevemente escreverei uma crônica contando da promessa que fiz a ele, no dia que nos conhecemos.
Promessa essa que se cumpriu. Que vem se cumprindo.
Eu, que procuro me cumprir, sempre.
Abração do

Roberto.

Anonymous said...

Roberto, para mim, neste preciso momento, é sinónimo de magia.

Vou deitar-me que aqui é tarde já, boa noite e...
abração! :)

Sofia.

Primeira Pessoa said...

então,
que o sono lhe seja leve, sofia.
uma noite de estrelas.
azuis.
abração do
roberto.

líria porto said...

a anterior, do vinícius - a rosa ácida... de hiroshima.

mas essa dagora é linda, harmoniosa...

Primeira Pessoa said...

ah, Líria... era ney matogrosso... ainda nos secos e moiados...
quer que eu me mande o mp3 dela?

beijão do
roberto.