Monday, January 18, 2010


















O ouro dos tolos

Fiquei desolado quando soube do roubo do quadro O Lavrador de Café, de Cândido Portinari. E agora que encontraram as obras surrupiadas do Masp, achei motivo bom para um sorriso.
E até abri uma garrafa de vinho raro que ganhei quando fiz quarenta anos de idade, com a promessa de que só a degustaria num momento especial.
Assim o foi.
Assim está sendo, no que escrevo, de casa, esta crônica.
Falar de desonra num país onde escândalos como os dos sanguessugas e do mensalão são verdadeiros contos de fadas pode parecer piada de salão, mas não é.
Seria uma desonra para o país, deixar cair em mãos bandidas uma peça que é – e há aqui espaço para uma acirrada discussão - a Mona Lisa das artes plásticas brasileiras.
Do pincel de Portinari brotaram ainda orquídeas que figurariam, certamente, na lista das dez mais importantes obras brasileiras de todos os tempos e que poderiam ser, a tal obra-prima ainda não oficializada de nosso povo.
Temos nossas Guernicas, nossos O Grito, nossos Girassóis.
Somos ricos. Abundantes.
No cenário nacional Portinari pariu várias obras deste quilate e importância: Os Retirantes, O Mestiço e O Café, só para citar algumas
O homem nascido no interior de São Paulo transcendeu a todos e está numa categoria diferente, à frente mesmo de outros mestres, como Di Cavalcanti e Anita Malfati.
Sou fã de Portinari, gênio que comparo a Picasso e Salvador Dali, os outros monstros sagrados de minha tríade.
Os seus quadros iluminam minhas retinas e decretam um estado de felicidade em meu coração, que só encontro naquilo que é, para mim e em mim, essencial.
É assim quando escuto um choro de Pixinguinha, um samba de Chico Buarque ou de Tom Jobim.
É assim quando revejo na televisão um gol de Pelé, um drible de Garrincha ou uma falta cobrada por Zico.
É assim quando leio um poema de Drummond ou entro em um lugar projetado por Niemeyer.
É assim quando beijo com os olhos o vôo matinal de um tucano, ou sinto o cheiro do mar de alguma praia do nosso país.
Todas as vezes que vou a São Paulo, passo pelo Masp como quem tem a obrigação e o prazer de visitar um velho e querido amigo.
E sempre reclamei das condições do Masp, totalmente negligenciado, com elevadores que não sobem e nem descem direito, e galerias sujas.
O Masp precisa de um banho de loja mas, principalmente, precisa de uma repaginada na segurança.
Colocar a tranca na porta só depois da passagem do ladrão é de uma burrice descabida, mesmo que tenhamos dado sorte neste episódio de agora.
O desaparecimento momentâneo do Lavrador de Café é aquilo que poderíamos chamar de mal-necessário, pois traz à luz esse assunto sério que o descaso com a história do Brasil. E o problema não é só no Masp.
Um exemplo gritante são as igrejas brasileiras, de onde as obras de arte sacra tem sido pilhadas sem a menor cerimônia ao longo dos anos.
Não existe ainda em nosso país um sistema efetivo que proteja e preserve a nossa memória. Nossos museus estão definhando, com muito do bom que já foi produzido enfeitando hoje salas de exposição e coleções particulares da Europa e Estados Unidos.
E isto já nem diz respeito apenas às nossas obras de arte.
A biblioteca de Jorge Amado, por exemplo, está em vias de ser mandada para qualquer lugar que a queira abrigar.
Um dos mais belos acervos literários do Brasil poderá parar em mãos estrangeiras, gratuitamente, simplesmente porque o governo (ou a iniciativa privada) nada está fazendo para que seja o contrário.
Se para senbilizar nossas autoridade for preciso um golpe relativamente baixo, apelemos, evocando a lembrança do roubo da taça Jules Rimet, aquela do tri-campeonato vencido no México, e que foi derretida pelos bandidos.
Ela virou correntinhas, brincos, pulseiras e pingentes.
E aquilo que possuia um valor histórico e afetivo imensuráveis se transformou, nas mãos dos ladrões, ouro de tolo.

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14 comments:

nina rizzi said...

ow, tá aparecendo aqui embaixo: seu cometário estará visível depois de aprovado", mas ainda não comentei! a não ser que tenha ido comentário de outro canto.. rsrs..

hm.. o portinari é dos meus pintores preferidos. já leu os poemas dele? se não, envio aqui na caixa depois.

beijo :)

Primeira Pessoa said...

nina,
nao conheço o portinari poeta.
pode mandar, sim.

ele é meu pintor favorito.
amo as coisas dele. pra mim, foi o maior pintor brasileiro de todos os tempos.

beijos.
R.

líria porto said...

descaso é violência - e é imperdoável! como educar, impedir que pixem monumentos, por exemplo, se tudo fica às traças, à mercê do vandalismo. da depredação ao roubo é um passo.

portinari é fantástico! ir à igrejinha da pampulha é voar com aqueles pássaros - são francisco é belíssimo - a nina veio aqui e não a levei lá - imperdoável também!

besos

Primeira Pessoa said...

líria,
aquela igreja é lindinha demais.
mas não cuidam dela como deveriam. aliás, a lagoa da pampulha é uma meleca. é um cartão postal da cidade e fica aquela imundície, aquele mal-cheiro.
eu amo BH, mas às vezes sou obrigado a concordar com a mulher de meu irmão (nascida em portugal e passou a vida inteira nos EUA, que foi a BH e detestou) que a cidade é uma imundície.
em curitiba, por exemplo, é tudo muito bem cuidado. os caras realçam a beleza da cidade.
essa prefeitura de bh poderia fazer mais e melhor, porque BH tem coisas muito interessantes. e um povo carinhoso, hospitaleiro.
eu nào me conformo.
e to sempre protestando.
abração do
roberto.

líria porto said...

como na propaganda oficial "eu amo bh radicalmente" - só que o meu amor é sincero...

besos

Primeira Pessoa said...

como diria o pedra azul, bh é bela, os político é que fod'ela...rs

abração do
roberto.

Beatriz said...

a valorização da cultura no Brasil ainda é um grande problema.
obrigada pela visita, voltarei por aqui também.

Primeira Pessoa said...

é verdade, Beatriz.
o Brasil precisa valorizar o que tem de bom.
isso nos entristece muitíssimo.
mas a esperança é aquela imortal... e brasileiro é campeão de esperança.
obrigado pela visita ao blog.
grande abraço do
roberto.

Paulo Jorge Dumaresq said...

Roberto, você pintou um quadro sem retoques do descaso público/privado em relação aos bens materiais e imateriais, bibliotecas, museus, memoriais e afins. É preciso dar um basta nisso. Abração.

Primeira Pessoa said...

paulo poeta, digamos que "rabisquei"...rs
afinal, estávamos falando de cândido portinari...
esse sim pintava o caneco.

é tão bom te ter aqui, paulo.
caramba... tão bom!

abraços,
roberto.

Anonymous said...

Concordo, Roberto!
Boa analogia: ouro de tolo.

Nem todos sabem dar valor à nossa riqueza cultural. Para contribuir, cito aqui a nossa literatura de cordel. Estupenda, ninguém faz igual. Passada de geração a geração só na base da decoreba, por na época vários poetas dessa arte nem saberem escrever.

Beijos!

Primeira Pessoa said...

larinha,
é bem isso. lembra do que fizeram com a taça que o brasil ganhou no méxico, em 1970?
derreteram, pra fazer correntinha. a Fifa enviou outro pra substituir, mas não era a original.
quanto ao cordelismo, acho uma das mais genuínas formas de manifestação da cultura do nosso papo. admiro, curto e, nas vezes que fui ao nordeste, andei longe atrás de um bom repente, ou de um bom libreto de cordel.
você sabia que essa semana o governo brasileiro reconheceu a profissão de "repentista"?
fiquei feliz.
abração do
roberto.

Anonymous said...

O meu pai diz muitas vezes " Este país está a saque" e eu penso que cabe a nós travar isso.
Alguém disse, penso que Mario Zambujal, "Não são as pessoas que mudam o mundo, e o mundo que muda as pessoas".
Em nós está a esperança de mudar o mundo, ou tentar.
Beijos

Primeira Pessoa said...

Laura,
não sei se é o mundo que muda o homem. juro, não sei.
tenho tantas dúvidas. tantas...
acho o homem tão poderoso, na sua fragilidade e maldade... criam e destroem, canibalizam-se...
às vezes acho que o homem inventou Deus.

que Ele me perdoe, se blasfemo.
nasci temente, juro.
mas é que, às vezes, desafino.