Sunday, March 14, 2010

.

















Frágil coração de poeta

Coração de poeta é um objeto frágil, peça de cristaleira que, se cair, pode quebrar. O meu deu um grande susto na semana que passou.
Eu estava deitado, encafifado com um mote qualquer, pintando na tela branca do teto mais um impossível Renoir. Foi quando senti aquela pontadazinha no peito. Ignorei, pensei que fosse prisão de ventre.
Não era.
Fui ficando assustado.
Diante daquela súbita ameaça, dei um salto da cama e fiz a coisa mais sensata que qualquer homem faria num momento desses: gritei por mamãe.
E ela veio.
Dona Rute, de visita, correu pra me socorrer.
Fez massagem, compressa de toalha molhada, rezou para São Judas Tadeu, mas o suadouro não parava.
O jeito foi rumar para o hospital mais próximo, antes que fosse tarde demais.
No hospital, demorou a cair a ficha.
Veio a bateria de exames de coração e a coleta de sangue suficiente para escrever um poema num muro.
O eletrocardiograma indicava que estava tudo bem, mas o exame de sangue não deixava dúvidas: eu havia enfartado.
Enfarte é uma palavra tabu.
Como a brochada, o exame de próstata e a “freada de bicicleta”.
Homem evita tocar nesses assuntos.
E, no entanto, ali estava eu, na contra-mão da história, no branco absoluto da paredes do hospital sofrendo por assuntos periféricos, que não mereciam mais a atenção.
E enfartado.
No escuro do quarto apagado, depois que todos se foram, chorei miúdo. Afinal, quem tem coração e se emociona, costuma chorar.
Pensei nas pessoas que dependiam de meu trabalho para ter sobre suas mesas um pedaço de pão, e nos que verdadeiramente me queriam bem. Pensei até naqueles que não mereciam participar daquele pensamento dolorido na solidão de meu corner.
Custou a amanhecer.
Sabino Torre, um italiano de aproximadamente 50 anos, bigode à Barão do Rio Branco, considerado uma das maiores autoridades em cardiologia em New Jersey, cuidou do caso.
Antes de entrarmos na sala de procedimento cirúrgico, enquanto uma enfermeira filipina muita bonita depilava minha virilha – o que muito me constrangia -, ele chegou ao meu ouvido e cantou a bola:

- “Deixa comigo, meu chapa. Você não poderia estar em melhores mãos. Vai ser uma viagem suave”.

Mais um calafrio.
Que "viagem" seria aquela?
Felizmente, o cateterismo mostrou que não havia bloqueamento das artérias.
Eu não havia, verdadeiramente, enfartado.
Tratou-se de um vírus que se espalhara por várias partes do corpo e tentou, num momento de suprema audácia, se alojar no lugar sagrado onde só deveriam entrar as musas, os familiares, os bons amigos e as letras do alfabeto usadas na composição de poemas e canções.
O músculo da emoção, diante da ameaça de invasão, expele uma enzima que só é dectada através de exame sanguíneo.
Trata-se da mesmíssima enzima que anuncia o enfarte.
Após uma semana sob observação e transformando minha ala do hospital numa Marquês de Sapucaí, fui liberado.
As enfermeiras, acostumadas a lidar com velhinhos descendo a serra, abandonaram por alguns dias a sisudez e o pragmatismo pelos quais elas são conhecidas, e entraram no samba do mineiro doido.
Foi quase uma festa.
Fazia muito que as moças do Saint Barnabas não cuidavam de um paciente tão pirado.
Uma delas chegou a sugerir que eu estaria na ala errada.
A de psiquiatria ficava no outro extremo do grande complexo hospitalar de Livingston, intuí.
Se não deixei saudades, terei deixado alívio.
Vou enviar flores e chocolates qualquer dia destes. Junto com meu pedido de desculpas, obviamente.
Conversando sobre o assunto com Kledir Ramil, recebi algumas recomendações, que deverei seguir à risca.
Para quem não sabe, além de inspirado cronista e cantor, ele é também dublê de proctologista e consultor de informática para leigos de todos os credos.
Usando seu método infalível irei cortar radicalmente o consumo de bebidas alcóolicas, sexo, rapé e alimentos gordurosos, como o torresmo de armazém e o pé-de-porco de botequim.
Passada essa fase de abstenção, entrarei na fase da prática de hábitos saudáveis: caminhada na esteira, um litro de chimarrão por dia e vegetarianismo.
Vegetarianismo vem a ser um tipo de alimentação praticado por antigos povos afeminados, como os espartanos e os pelotenses, que sabidamente desenvolve a resistência das coronárias e a sensibilidade artística.
Com sorte, serei parceiro de Kleiton & Kledir numa penca de canções.
Irei cortar os açúcares, as massas e, em caso supremo, os pulsos.
Se tudo isso não adiantar, instalarei um antivirus no coração.
Segundo Kledir, se dá certo no computador, deve dar certo na gente também.
Pode ser um Norton, um McAfee, ou de uma outra marca qualquer.
Embora eu preferisse, caso já existissem no mercado, os da marca Drummond, Rimbaud ou Baudelaire.
Esses, sim, os antivírus mais adequados para coração de poeta.

.

A Música Que Toca Sem Parar: Secos & Molhados, Flores Astrais

23 comments:

Sueli Maia (Mai) said...

Os poetas amam e se emocionam tanto, que como se fora cigarra - cantam, até o peito explodir. "Cuide-se bem, perigo tem por toda parte..." Texto ou contexto e porque gostas de música, o coração tem que bombar e retumbar no compasso, no ritmo exato da vida sem sustos.
Abraços, saúde, bom domingo e boa semana!

Primeira Pessoa said...

mai,
a cronica é antiguinha... tô bem.
agradeço a preocupação e as palavras carinhosas.
você, como sempre, toda feita de gentileza.

abração dominical do
roberto.

Jorge Pimenta said...

Por momentos não percebi se se tratava de um olhar retrospectivo provocado pela explosão no músculo-verdade,se de uma inspirada homenagem ao coração, em Dia da Poesia, no Brasil. Percebi que ambas.
Ufa, afinal, como o do comum dos mortais, o coração dos Poetas canta mas também se cansa... A diferença é que mesmo cansado sabe cantar, ainda que por entre a dor (fingida ou vivida...).

um abraço, Poeta!

Primeira Pessoa said...

inspiradíssimo post, poeta nortenho.
gostei, jorge.
gostei muitíssimo.

suas palavras, sempre colocando um ponto de exclamaçào nessa página.
!!!!!
abraço maior do
roberto.

Cosmunicando said...

bom saber que a crônica é antiguinha, mas que susto deve ter sido... você conseguiu transformá-lo em algo leve, quase lúdico, e também cheio de reflexões.
E a dieta-Ramil, funcionou? rsrs
Saúde sempre.
beijos,
Mercedes.

Cosmunicando said...

ps: tomei a liberdade de publicar aqui, com os devidos créditos e link :)

Primeira Pessoa said...

moça cosmunicante,
uma coisa de cada vez:
fiquei feliz com a crônica (essa intrusa) no meio de tão boas companhias. tô começando a me achar cronista de verdade, agora.
pois bem: a dieta ramil.
sexo eu já tinha abdicado. o rapé custou, mas abandonei.
aderir ao chimarrão, tá complicado. cismo de misturar o meu com vodka.
a parceria com a dupla K & K já rolou: duas canções inéditas que um dia serão gravadas e me proporcionarão independência financeira com o dindim dos direitos autorais. vai vender mais que o "é o tchan", quando o "é o tchan" existia (e vendia).

torresmo de armazem já fiz até simpatia pra deixar, mas tá difícil. e troquei o pé-de-porco pelo pé-de-porca, o que já é um avanço.

vegetarianismo? não, obrigado.
não sou lagarta, uai!

e aí, só falta cortar os pulsos.
se o serra ganhar as eleições pode ser que aconteça.

brigadão pelo carinho.
R.

Andy said...

São nesses momentos que a vida parece nos fugir, que a nossa fragilidade fala mais alto...
no meio do seu desabafo fez-me sorrir! Nada melhor que encontrar momentos positivos naqueles que nos parecem não ter fim de tão assustadores, à primeira vista...
Obg pela sua visita, eu já havido passado por cá mas faltou-me coragem para deixar algumas palavras :)))
Boa noite!

CANTO GERAL DO BRASIL (e outros cantos) said...

Roberto,
Gosto muito do seu coração de poeta, frágil, fingidor...
Gosto muito de suas crônicas, novas, antigas...
E estou esperando, no plural, ler um poema seu aqui nesta 'esquina democrática' do mundo, do cosmos...

Fã do seu afã,
Da rama.

Anonymous said...

Depois dessa, fiquei boba. Não digo mais que vc é um comédia, pois apesar de rir com seus textos, a carga é pesada e com doses de melancolia. Afinal, poetas são todos iguais (ou bem parecidos), sei bem.

O susto deve ter sido grande, e apesar de fazer tempo, ainda deve te abalar, a não ser que os antivírus sonhados por vc tenham sido bem implementados no peito.

Sabe, Roberto, gosto muito do seu jeito de escrever =).

Boa semana! Beijos.

Primeira Pessoa said...

andy,
ainda bem que tomou coragem e escreveu. gosto de interagir com os amigos que passam por aqui. acho essa a parte mais interessante da "fazeção" do blog.

agora que você achou a coragem, por favor, não a perca.
e volte sempre que quiser. essa casa é sua.

abração do
roberto.

Primeira Pessoa said...

larinha,
cê já notou que algumas pessoas tem um jeitinho de, brincando, falar de coisas sérias?

às vezes o que tento fazer é isto.
acho que a vida dói menos assim, com um (mais de um é bem melhor) sorriso.

e tenho aprendido a rir de mim próprio, de minhas fraquezas, deficiências, feiúras, defeitos e mazelas... a aí vou tantando melhorar.

é uma espécie de terapia, quase um exercício de redenção...

o que não é brincadeira é o afeto que sinto pelas pessoas que fazem parte da minha vida.

pessoas como você.

beijão, larinha.

do
roberto.

Primeira Pessoa said...

de la rama,
tava sentindo falta da sua presença carinhosa aqui no blog.
ó, tô precisando tomar vergonha na cara e escrever textos novos. esta semana quase escrevi uma crônica falando da minha vontade de beber uma poção mágica e me transformar numa estrela do mar.
por que? uai... a estrela do mar perde uma ponta, e essa ponta renasce...

e eu queria renascer das minhas dores, de meu colesterol alto, de cada título perdido pelo cruzeiro, cada desilusão do coração, cada falcatrua dos zé roberto arrudas da vida, cada tirania de um bush ou um chavez, cada declaração de imposto de renda e por aí afora, mas sinto-me morrer aos pouquinhos...

é foda essa condição ... essa mortalidade, né? rs

mas aí o texto não saiu... exagerei no cuba-libre e fui dormir.

tô ficando véio, de la rama.

abração do seu amigo,
roberto.

Anonymous said...

tchê Lima
me assustei até cair a ficha de que a história era antiga
como essa possibilidade de infartar ronda qquer um de nós, o tempo todo, resolvi chutar o pau da barraca
experimentei chimarrão com vodka, comi um pedaço de torresmo e estou até pensando em voltar a praticar sexo - uma coisa de cada vez
um beijo enorme nesse coração de poeta
Kledir, seu fã

Primeira Pessoa said...

nhô kledir,
uai, cê é o meu guru para assuntos de "vida saudável"...rs
lembre-se daquela máxima antigona que reza que passarim que anda com morcego dorme de cabeça pra baixo...
e cê faz tudo bonitinho... eu é que tenho que dar uma melhorada.

bão demais é te ver por aqui.

beijão do
Roberto.

Paulo Jorge Dumaresq said...

Roberto, Roberto, eu que quase infartava lendo o seu texto. Depois, o alívio por se tratar de um escrito de antanho. Ufa! Logo no Dia da Poesia!!! Demais pra mim. De qualquer modo, fica a minha solidariedade tardia. Forte abraço e sigamos juntos nessa aventura humana por muito tempo ainda.

Primeira Pessoa said...

foi só um susto, paulo.
aliás, um baita susto.

mas, ao que tudo indica, não tomei "vergonha na cara"...rs

e continuo cometendo os mesmos pecados.

mas vou melhorar, prometo.
abração do seu amigo
roberto.

Anonymous said...

Ah Roberto, espero que esteja tudo bem!!
Coração de poeta não tem cura, mas bate sempre!
Beijos
Laura

Primeira Pessoa said...

laura,
a poesia, essa sim, é "incurável"...
mas é tão boa, a poesia...

o coração, já é oooooutra conversa...
vou cuidar melhor do meu nesse ano que se inicia... começo com caminhadas bem no início da primavera, já reduzi drasticamente os cigarros...

ando pensando em longevidade... e a gente só começa a pensar assim na chegada do outono de nossas vidas.

a cronica e o "aperto" são antigos. tá tudo relativamente bem por aqui.

abração do
roberto.

Fernando Campanella said...

Muito boa esta crônica, Roberto, muito boa. E fico feliz por tudo ter sido um vírus. Mas te cuida, comida mineira é boa, mas de vez em quando. Ontem, por exemplo, comi um feijão tropeiro a rigor, com bisteca, couve, ovo, e até uma banana milanesa no meio. E por sobremesa um doce de leite com queijo 'meia cura', tipo da Canastra, bom demaisssss, sô.
Ah, vi tua sugestão lá nos comentários de minha última postagem. Tentei a crônica, quando tiver um tempinho dê uma espiadinha lá. Gostaria de ter tua opinião, meu mestre, e aceito sugestões seja sobre gramática, conteúdo, correções, 'whatever'.
Grande abraço, vamos expressando por aqui nossas emoções mineiras, das Gerais.

líria porto said...

eu tinha lido, assustado - isso faz tempo - mas é bom deixar recado - se teu coração falhar, te mato!
besos

Primeira Pessoa said...

fernando,
o ministério da saúde adverte:
feijão tropeiro (com todos os seus acessórios) NÃO é prejudicial a saúde.
no próximo final de semana, experimente um tutu, ou encare, de frente, um leitãozinho à pururuca.

cê vai viver 100 anos.
vou lá espiar sua crônica que, tenho certeza, ficou dentro do combinado.

abração do seu amigo
R.

Primeira Pessoa said...

lírica,
se algum dia eu morrer (minha sogra costuma dizer isto... e me deixa apavorado... rs)... eu venho puxar o seu pé.

viu que te mandei o cd do francisco aafa (o pai dele devia ser gago...rs)?

beijão,
R.