Thursday, March 11, 2010



















Sei hoje que ninguém antes de ti
morreu profundamente para mim
Aos outros foi possível ocultá-los
na sua irredutível posição horizontal
sob a capa da terra maternal
Choramo-los imóveis e voltamos
à nossa irrequieta condição de vivos
Arrumamos os mortos e ungimo-los
São uma instituição que respeitamos
e às vezes lembramos celebramos
nos fatos que envergamos de propósito
nas lágrimas nos gestos nas gravatas
com flores e nas datas num horário
que apenas os mate o estritamente necessário
mas decerto de acordo com um prévio plano
tu não só me mataste como destruíste
as ruas os lugares onde cruzámos
os nossos olhos feitos para ver
não tanto as coisas como o nosso próprio ser
A cidade é a mesma e no entanto
há portas que não posso atravessar
sítios que me seria doloroso outra vez visitar
onde mais viva que antes tenho medo de encontrar-te
Morreste mais que todos os meus mortos
pois esses arrumei-os festejei-os
enquanto a ti preciso de matar-te
dentro do coração continuamente
pois prossegues de pé sobre este solo
onde um por um persigo os meus fantasmas
e tu és o maior de todos eles
não suporto que nada haja mudado
que nem sequer o mais elementar dos rituais
pelo menos marcasse em tua vida o antes e o depois
forma rudimentar de morte e afinal morte
que por não teres morrido muito mais tenhas morrido
Se todos os demais morreram de uma morte de que vivo
tu matas-me não só rua por rua
nalguma qualquer esquina a qualquer hora
como coisa por coisa dessas coisas que subsistem
vivas mais que na vida vivas na imaginação
onde só afinal as coisas são
Ninguém morreu assim como morreste
pois se houvesse morrido tudo estava resolvido
Os outros estão mortos porque o estão
Só tu morreste tanto que não tens ressurreição
pois vives tanto em mim como em qualquer lugar
onde antes te encontrava e te possa encontrar
e ver-te vir como quem voa ao caminhar
Todos eram mortais e tu morreste e vives sempre mais

Ruy Belo


* Ruy de Moura Belo (São João da Ribeira, Rio Maior, 27 de Fevereiro de 1933 Queluz, 8 de Agosto de 1978) foi um poeta e ensaísta português.
Apesar do curto período de actividade literária, Ruy Belo tornou-se um dos maiores poetas portugueses da segunda metade do século XX, tendo as suas obras sido reeditadas diversas vezes.

Destacou-se ainda pela tradução de autores como Antoine de Saint-Exupéry, Montesquieu, Jorge Luís Borges e Federico García Lorca.



A Música Que Toca Sem Parar:
Tony Garrido canta O Patrão Nosso de Cada Dia, de autoria de João Ricardo e que fez enorme sucesso com o Secos & Molhados.

16 comments:

Lídia Borges said...

"Este céu passará e então
teu riso descerá dos montes pelos rios
até desaguar no nosso coração"

Ruy Belo

Parabéns pela escolha.

Um beijo

Anonymous said...

Texto impactante do Ruy Belo, to boba aqui =).

Muito bonito mesmo.

Beijos.

Primeira Pessoa said...

lídia,
conheço as coisas do ruy belo faz pouco tempo. mas fico, cada vez mais.... fã dele.

abração do
R.

Primeira Pessoa said...

larinhei.
garimpei mais umas coisas do ruy belo e do daniel faria, dois talentos imensos...
fique de olho.
vou soltando em conta-gotas...

beijão do
R.

nina rizzi said...

querido amigo,

o rui está a parecer com Karl Marx na fotgrafia, hm? rsrs..

olha, comovente a crónica d'amigo cá embaixo...

um beijo, adorando as canções :)

Lau Milesi said...

Olá Roberto! O sobrenome do Ruy faz jus ao seu talento. D+.
Parabéns pela "bela" escolha.

Um abraço

Primeira Pessoa said...

nina,
karl marx? rs... sim, parecências...

e música bonita é comigo mesmo.

beijão,
roberto.

Primeira Pessoa said...

lau,
ele deveria até receber um upgrade pra belíssimo...rs

tornei-me fã de ruy belo...

abração do
roberto.

Anonymous said...

R.

Estou lendo seu blog retroativamente. Começando pelo começo, como fazemos com os bons livros, quando pegamos a brochura com cuidados, escolhemos bem o assento e nos preparamos para mergulharmos em outras pessoas (autores, personagens, alter-egos..)

Feliz com sua visita. Feliz com mais uma pausa que refresca.

Ana

Primeira Pessoa said...

ana,
também tenho esse hábito, de começar o jornal de trás pra frente. livro? nunca tentei. mas faz sentido nos blogs... faz todo o sentido... adotarei seu método, sei que terei gratas surpresas.

fico feliz que tenha passado por aqui.
abração do
roberto.

Unknown said...

Belo, belo, o Ruy. Quando ruírem as existências e ficaram somente os amores. Desses que nos fazem mais imortais que os deuses todos. Abraço.

Jorge Pimenta said...

Ruy Belo! Na minha opinião, só há um autor que trata as questões da "morte" com a mesma maestria: Ricardo Reis. Ainda assim (e nem de propósito termos falado nele quando cantado pelos Trovante), o poema "FIM", de Mário de Sá-Carneiro tem uma mensagem tocante; num registo singelo, quase "naif", faz-se a apologia da morte como libertação, assim se tornando motivo de celebração e não de comiseração:
Fim

Quando eu morrer batam em latas,
Rompam aos saltos e aos pinotes,
Façam estalar no ar chicotes,
Chamem palhaços e acrobatas!

Que o meu caixão vá sobre um burro
Ajaezado à andaluza...
A um morto nada se recusa,
Eu quero por força ir de burro

Mário de Sá-Carneiro

Um abraço lusitano, Amigo Roberto!

P.S. Cada melodia que escuto é uma nova epifania. Obrigado por teres partilhado todos estes pequenos tesouros! (a propósito, que conheces de Rodrigo Leão? Para mim, o melhor músico/compositor português!)

Primeira Pessoa said...

assis, tem uns caras que conseguem sacar os nuances da nossa fragilidade de uma forma difícil de explicar. difícil, pra nós.
natural, natural... pra eles.

abraço domingueiro.

roberto.

Primeira Pessoa said...

jorge,
esse poema que virou canção (ele que já era uma) tem um lugar muito especial dentro da minha história. quando adquiri o disco dos trovante que continha a canção (ainda nos oitenta...rs), o album era em vinil e quase furou essa faixa, de tanto que a escutei.

rodrigo leão? claro. desde o madredeus. no outro dia a "música que toca sem parar" (aqui no blog) foi pasion... aquele tango todo modernoso.
sou fã dele, que é bastante respeitado entre os músicos relevantes do brasil.

aguarde mais umas cantigas.

abraço do seu amigo
roberto.

Sueli Maia (Mai) said...

É sobre o não morrer da morte o amor - território de lembranças - que jaz a dor imorredoura - chão onde nasce tão belos poemas.
Não o conhecia, Roberto. Abraços, bom domingo e boa semana

Primeira Pessoa said...

bom, ele, né?
to aprendendo a conhecer novos (mesmo quando não são tão novos assim) autores.

de um anoi pra cá, lá de portugal, conheci uma turma da pesada: Llansol, eugénio de andrade, ruy belo, daniel faria e al berto...

e dessa turma que troca figurinhas aqui tenho tido gratíssimas surpresas. só não os cito, agora, porque vão ficar "metidos demais"...
mas fico devendo a citação.

beijão,
roberto.