Thursday, January 7, 2010

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Sob a sombra de uma mangueira em flor





Jorge Amado está sentado na varanda de sua casa no céu, olhando na direção do infinito azul à sua frente. Chega o carteiro e entrega uma correspondência, que Jorge abre com mãos trêmulas. No afã de ler seu conteúdo, rasga envelope e missiva. Corre para dentro da casa ampla, apanha seus óculos de leitura sobre a escrivaninha e, à medida que os olhos vão percorrendo as linhas, abre-se um sorriso em seu rosto que rejuvenesce:

Salvador, 16 de maio de 2008.

Querido Jorge, de tudo a saudade é a invenção mais triste da qual sou conhecedora, desde o dia em que foi levado de mim, por solicitação dos anjos poetas, para rimar versos de amor no céu. Deixou-me esse céu azul cobalto, que nos dias e noites de dor pela tua ausência, fazia-me sentir um enlaço do tamanho do mar, esse mesmo mar que também me deixou e que ficou a me alimentar a alma dolorida.
De você ficou ainda essa saudade cravada em meu peito, e que eu dizia pro meu coração que tinha o cheiro da maresia, meu inesquecível Capitão de Areia.
Esta saudade, que deixou meu corpo como uma terra sem alma, ressequida, frágil, inflamada em labirintos de desejos e em supostas figuras de tua voz, tuas palavras descritas nos pastores da noite, nas canções melancólicas dos velhos marinheiros, no ABC das primeiras letras cantadas por vozes infantis.
Essa saudade que transborda em cores imagináveis e que até hoje foi a impulsora de minha certeza de te encontrar e me encantar como você sempre fez nas noites em que o Eco perdido pelo teu nome preso em minha garganta reverberava sem rota, sem direção, dentro de um vento forte como a afastar o medo do mais temido pesadelo de não mais te ver.
Parto amanhã.
Sua, sempre
Zélia.

Uma lágrima de alegria resvala o rosto de Jorge. Ele a limpa com as costas da mão. Sente-se feliz.
Abre uma gaveta, apanha caneta e papel, seus dedos deslizam rapidamente e o nanquim azul dá a saber:

Mainha!
Todas as manhãs espero pela sua chegada. Nosso encontro finalmente se avizinha. Esses quase oito anos longe de você foram de ternura e lembranças. Sinto demais a sua falta.
Já que vem da Bahia, queria pedir-lhe que me trouxesse uns grãos da areia de Itapoã. Quem me trouxesse umas gotas de água do Rio Vermelho e me enfrascasse um pouquinho da brisa que sopra do mar em Ondina.
Traga-me a lembrança do gosto de uns acarajés, do azedume dos embus de Vitória da Conquista e o aroma dos cacau de Ilhéus.
Traga-me o som de um berimbau. Traga-me uma água de cheiro e um trancelim, e o frescor que faz debaixo da mangueira de nosso quintal.
Traga-me o cântico das lavadeiras durante a lavagem das escadas do Bonfim. Traga-me um fita do Senhor do Bonfim, já arrebentada, posto que meu desejo maior se realizará amanhã.
Estar com você de novo, mainha, para que continuemos nos cumprindo, é tudo o que esse comunista, ateu, pediu a Deus.
Beijo saudoso desse que é seu.
Jorge.

Ps: Zélia morreu na tarde de sábado (18 de maio), aos 91 anos, em conseqüência de uma parada cardiorrespiratória. Seu corpo foi cremado. As cinzas da escritora serão entregues aos filhos nesta quarta-feira. No mesmo dia as cinzas serão depositadas junto às do marido, Jorge Amado, sob uma mangueira, na casa onde o casal vivia no bairro do Rio Vermelho.
Zélia e Jorge, finalmente, um Destino de amor cumprido a quatro mãos.

8 comments:

Lara Amaral said...

Que lindo, Roberto! Se eles puderem ler isso, se emocionarão mais ainda. Esse texto deveria chegar, ao menos, aos filhos dele. Belíssima crônica-conto, essa sua.

Beijos para ti!

Primeira Pessoa said...

Esse texto me é muito especial, Lara. Jorge Amado e Zélia estão para a minha mitologia pessoal como Diego Rivera e Frida Khalo, Sarte e Simone...
Achava-os lindos, juntos. E pra mim estarão sempre juntos.
Benditos os que repousam, ao fim da linha, como eles, à sombra de uma mangueira em flor.
Abração do
Roberto.

gentil carioca said...

Uma das coisas boas nessa história de blogs é que acabamos encontrando espaços como esse. Adorei ter chegado aqui. E, olha só, também postei esse mesmo trecho de "Equador" do Miguel Souza Tavares.
abçs
PS: ah, sim: sou flamenguista...

Primeira Pessoa said...

Ser flamenguista não chega a ser um problema (rs). Tenho grandes amigos flamenguistas.
E sua visita a este cantinho deixou-me feliz. Passei no seu blog, deixeu meu nome no livro de visitas.
Abração do
Roberto.

Unknown said...

Na literatura brasileira José, Joaquim, Jorge e João foram fundamentais. O José de Alencar deu as bases de uma literatura própria, com nossas cores e buscando a matiz do nosso espírito. Joaquim Maria Machado de Assis foi o divisor de águas, reescreveu a história, a literatura nunca mais foi a mesma depois dele. Jorge Amado temperou os enredos e produziu narrativas absolutamente singulares, criou um país dentro de um país, inventou a Bahia. João Guimarães Rosa abriu as portas do encantamento, criou uma linguagem surreal para um mundo visível e instaurou o desconcerto pelo sertão de meu deus. Jorge e Zélia eram irmãos de carne e espírito, embora prevaricassem no paraíso carnal. As tuas cartas-cronicas captam esse essencial que existia entre ambos. Abraço.

Primeira Pessoa said...

Assis,
minha admiração por zélia e jorge é imensa.
a imagem da mangueira do quintal da casa do Rio Vermelho ficou tatuada em mim.
vou além da literatura - posto que ja se falou quase tudo da escrita deles - e falo como pessoa, mesmo.
eles eram bonitinhos demais, um exemplo pra todo aquele que crê no amor como a forma mais sublime de se viver.
Admiração do
Roberto.

líria porto said...

quando eu era menina pequena lá em araguari, dois velhinhos davam a volta no quarteirão muuuuuuitas vezes, todos os dias, de mãos dadas - dona sinhá e seu toninho lemos. aquele caminhar os fazia trilhardários aos meus olhos... e tinha também aqueles periquitinhos verdes, inseparáveis, cujas asas pareciam coladas...

acabo de me lembrar duns velsos antigos:

parceria
líria porto

sapatos carregam
penas e dores
e até dissabores
mas andam em par

vontade eu tinha
de ser um sapato
velhinho que fosse
serias o outro
a partilhar-me os passos
os saltos percalços
a entender-me as carências
armadilhas
temores

*
besos

Primeira Pessoa said...

Líria,
o homem, quando é sozinho, até o rastro dele é feio... assim dizia tavares dias, poeta mineiro...
e jorge achou o seu par...
e zélia, o seu.
quando isto acontece, o que é raro (esse milagre que alguns chamam de encontrar a alma gêmea, outros, a tampa da garrafa... ou, o que queiram chamar a palavra amor...), nada lhes faria - ao par - mais justiça do que a caminhada de mãos dadas pela vida, até a sombra da mangueira em flor...

essa aí, de jorge e zélia.
poeticamente perfeita.

abração,

R.