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Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,
e o que nos ficou não chega
para afastar o frio de quatro paredes.
Gastámos tudo menos o silêncio.
Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,
gastámos as mãos à força de as apertarmos,
gastámos o relógio e as pedras das esquinas
em esperas inúteis.
Meto as mãos nas algibeiras e não encontro nada.
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro;
era como se todas as coisas fossem minhas:
quanto mais te dava mais tinha para te dar.
Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes.
E eu acreditava.
Acreditava,
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.
Mas isso era no tempo dos segredos,
era no tempo em que o teu corpo era um aquário,
era no tempo em que os meus olhos
eram realmente peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco mas é verdade,
uns olhos como todos os outros.
Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor,
já não se passa absolutamente nada.
E no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
de que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.
Não temos já nada para dar.
Dentro de ti
não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.
Adeus.
Eugénio de Andrade
11 comments:
puta madre! putana de la madonna! esseédosmeus preferidos, roberto.
ah,eu achei muito gentil seu comentário lá no blogue. obrigada.
um beijo.
...Gastamos tudo menos o silêncio....
Beijo
nina, eugénio é fodástico.
vou postá-lo enquanto este blog existir.
e gosto dos seus textos, sim. tão jovem e já tão "entrada" na vida. você passa isso nas coisas que escreve.
um final de semana em azul.
com poesia e pão.
abraços do
roberto.
magnólia,
o que dizer mais sobre o poeta?
é desfrutarmos dele em toda a sua beleza e glória.
abraço grande do
roberto.
clap clap clap (isso são palmas - as palavras estão gastas)
besos
ainda bem que as retinas não se gastam, né, lírica.
clap, clap, clap...
também de cá!
Gosto muito de Eugénio de Andrade. Foi um prazer reler este poema - não olhe, me senti mais nu.
Um abraço amigo.
Roberto,
Preciso vender menos zapatos. Só conheci eugeniodeandrade recentemente numa crônica sua no BV. E é cada zapatada, hein!
"todas as coisas estremeciam só de murmurar o teu nome no silêncio do meu coração..."
Obrigado por esse dentre tantos presentes,
Ramúcio.
Bem vindo, José Carlos.
não, não olharei para a sua nudez...
aqui, repete-se a velha estória do poema é que lê o leitor, né?
coisa bonita, isso.
abraço grande do
Roberto.
ramúcio,
não se sinta mal. só muito recentemente descobri eugénio, mia, Llansol (essa mulher é outra preciosidade), David Mourão-Ferreira e Daniel Faria (entre outros ... tenho uma lista de presentes que recebi, pra ir postando por aqui) muito recentemente.
e é uma alegria compartilhar com os atentos.
abração domingueiro... já sentindo o cheiro da pizza...
roberto.
Uma carta em versos, de longa tradição poética. Eugênio de Andrade é um 'fave' em minha lista. Muito bom e este poema é de uma beleza seca, porém ainda lírico nas entrelinhas. Grande abraço.
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