Monday, March 8, 2010
Viagem na boléia do tempo
Venho a Minas Gerais por um motivo diferente. Venho dar uma força a meu pai, que há alguns dias teve um derrame cerebral.
Ainda nem aterrisei no aeroporto internacional de Confins, e uma sensação estranha começa a tomar conta de mim. Lá de cima, as montanhas mineiras ganham uma dimensão de beleza para mim, filho da terra, que é impossível descrever em palavras.
O sol brilhante fabrica sombra em árvores, transforma riachos e lagos em espelhos de prata, realça a trajetória de uma caminhonete levantando um poeirão na estrada.
Para onde estará indo essa caminhonete? – pergunto eu.
Durante alguns segundos, pego uma carona e, na boléia da caminhonete, saio "passeando" pelas Gerais.
Minha primeira parada é Ouro Preto, lugar que ocupa a prateleira de cima entre todas as minhas lembranças.
Passear sobre mortos em igrejas pintadas de ouro pode parecer estranho, e é. Mas amo demais esta cidade, que é a minha Paris, minha Pamplona, minha Nova York e minha Quebec, tudo reunido numa só.
Subo e desço ladeiras, as ruas apertadas, o chão de pedras lisas, colocadas ali por mãos escravas.
Entro na casa onde viveu Tomás Antônio Gonzaga e de sua janela quase consigo ver a cabeleira de Marília de Dirceu, crina de égua ao vento. Quero ficar pra dormir, mas a caminhonete da saudade não pode parar.
E é assim que, em alguns instantes, estacionamos na boca de entrada da gruta do Maquiné. Um rápido tour, os olhos cheios de beleza que a natureza esculpiu ao longo de milhares de anos, e já estou pronto para uma visitinha à casa onde viveu um certo João Guimarães Rosa, em Cordisburgo.
Sento-me na cama onde dormiu o criador do Grande Sertão Veredas, bebo café numa caneca de esmalte descascada pelo tempo.
Despeço-me do lugar onde viveu o escritor e já estou na Governador Valadares da minha história, comendo cascudo frito e carne-de-sol - de dois pelos - de Frei Inocêncio (acompanhada de mandioca cozida e manteiga de garrafa), bebendo cerveja estupendamente gelada num bar, enquanto asas-deltas e paragliders fazem um bailado colorido no céu.
Ali, com amigos de infância, bebendo uma boa pinga de alambique, tricoteando brincadeiras de um tempo que se foi, sou de novo um menino, correndo atrás de uma bola de meia, soltando pipa, levando à tiracolo um embornal cheio de bolinhas de gude.
Muito mais que isto, sou um homem correndo atrás de mim mesmo, como um cachorro rodopiando, tentando morder o próprio rabo. É assim a trajetória do homem, insistente em passar o resto de seus dias correndo atrás do menino que um dia foi.
E amanhecer na Serra do Caraça, passar a tarde num vapor do Rio São Francisco, escutando estórias de pescador.
Anoitecer em Diamantina e participar das serestas das noites de quinta-feira em Montes Claros, quando o mercado municipal se fecha para as vendas, e reabre para receber a população para uma cantoria de respeito.
Violões, cavaquinhos, tambores, pandeiros e flautas: a voz brotando dos pulmões num entusiasmo que te leva a abraçar estranhos, irmãos em outras vidas, e te dá uma indescritível alegria por saber, de cor, a letra de preciosidade como essa aqui:
“A deusa da minha rua
Tem os olhos onde a lua
costuma se embriagar
Nos seus olhos, eu suponho
Que o sol, num dourado sonho
Vai Claridade buscar” (...)
E acordar, nas cercanias de Belo Horizonte, lugar onde vive meu pai.
Sentar-me com ele à mesa, beber queimadinho, comer pão de queijo e biscoito de polvilho e um naco de broa de fubá.
Ver que ele está bem, lúcido, ligeiramente ranzinza, sem acusar nenhum resquício do acidente vascular que quase o levou de nós. Consigo sentir o seu cheiro...
Mas um barulho metálico me traz de volta ao mundo real.
A aeromoça anuncia que pousaremos em segundos. Aperto o cinto de segurança e retorno a poltrona à sua posição inicial.
Viro o rosto e, da janela do avião posso avistar ainda, lá em baixo, a caminhonete sumir no meio do poeira e da minha imaginação.
E o meu coração bate apressado, como o de um menino saudoso, que não vê o momento de abraçar seu pai.
*
A Música Que Toca Sem Parar:
Manequim, palavras de Renato Rocha, melodia de Geraldo Azevedo, na voz do segundo.
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10 comments:
Impossível não lembrar do Milton:
"Há um menino
Há um moleque
Morando sempre no meu coração
Toda vez que o adulto balança
Ele vem pra me dar a mão..."
Comovente percurso íntimo em busca de suas raízes. Lembranças vividas e sonhadas; trajetória de cachorro que corre atrás do próprio rabo, como você tão bem comparou, e que não nos deixa esquecer de toda a reverberação da infância. Ainda mais quando se é mineiro (ou no meu caso, quase isso).
Que o encontro com seu pai tenha sido como o descrito no texto, ainda mais cálido e belo.
Venho para retribuir a visita que me fez há muito tempo lá no meu blog. Pouco depois dela estive ausente, e só agora aproveito para conhecer a pessoa que me deu uma bela pista para a melancolia dos mineiros!
Um abraço,
essa crônica me balança, revira meus alicerces como os terremotos!
besos
Deixo-me vogar nas palavras com que navegas... Incrível a pujança da tua escrita, simultaneamente viril e gentil!
Li, reli, treli...
Um abraço, Roberto!
roberta,
meu pai tá bem. estivemos juntos recentmentes e ontem, ao telefone, contou-me que plantou 80 mudas de batata-doce.
nós, mineiros, melancólicos, essa herança lusitana... você tem razão.
fico feliz com sua visita.
faça-se em casa.
abração do
roberto.
líria,
tô com saudade d'ocê.
e outubro que tarda, né?
beijão do seu fã
RL.
jorge,
você, sempre um cavalheiro, generoso, gentil...
sua presença entre os meus me fortalece, traz imensa alegria.
saiba-se sabedor disto.
abraço desse seu amigo,
o R.
Que bom que teu pai está melhor, Roberto. Percorremos o mundo de nosso destino e sempre fica o elo, o sangue, a doce/dura palavra infância batendo eternamente as asas em nós.
Vou ficar bravo com vc agora, rs.... só Menciona a Minas de Ouro Preto, Diamantina, BH, Valadares, Montes Claros, Cordisburgo....
E o sulzão mineiro não vai ser mencionado nao?
Mas tá perdoado porque acho que não conhece a região aqui, pois após fazê-lo tenho certeza de que vai carregar a Mantiqueira contigo para onde for, rs....
Abração.
fernandíssimo,
perdoe minha ignorância, mas ainda não conheço o sul de minas. o renato tá sempre indo pra são lourenço, e tece loas à região. elogia o clima, as pessoas, a bela paisagem...
além de me desculpar com o amigo, prometo, muito mais que reparar um erro, preencher uma lacuna que tá aqui, aberta, latente....
o sul de minas me conhecerá em breve.
palavra de escoteiro!
abração do
roberto.
Roberto, já não consigo encontrar adjectivos para as suas crónicas, espetaculares.
Adoro a forma como nos leva ao seu mundo, aos seus sentires e nós vamos viajando por ele, comovidos.
Espero que o seu pai já esteja de boa saúde.
Beijinhos
Laura
meu pai ta bem, laura.
graças à Deus ele tá bem.
agradeço suas palavras carinhosas e a preocupação com seo totoca.
olha, dá uma checada no seu email, laura.
tem coisa lá.
abração do
roberto.
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