Friday, January 1, 2010

.













Das coisas que não morrem jamais

Eu era rapazote em Governador Valadares e começava com o vício da leitura e as invencionices da escrevinhação.
Poesia foi a primeira grande fixação.
Misturava Augusto dos Anjos, Carlos Drummond de Andrade, Arthur Rimbaud e Charles Baudelaire com os catecismos de Carlos Zéfiro e as estórias do Jeca Tatu, do Almanaque Biotônico Fontoura.
Depois descobri a beleza das crônicas, o que acabou se tornando um ofício diário. Era um banquete requentado, é verdade, mas ainda sim, um banquete.
Paulo Mendes Campos, Fernando Sabino e Rubem Braga me eram servidos à medida que os jornais do Rio e Belo Horizonte chegavam à cidade, três dias após terem sido publicados.
Os Lima - de posses modestas -, não assinavam aquelas publicações, mas um vizinho que trabalhava numa barbearia chique do centro da cidade as trazia para mim, depois que já haviam sido lidas e relidas pela clientela e um número mais recente as substituía.
Só comecei a gostar dos romances depois de ter experimentado outros gêneros mais curtos. E bem depois. Eu não queria o compromisso duradouro da leitura.
Queria algo rápido, como uma paixão. Os jovens, em geral, são assim.
Impetuosos, apaixonados, preguiçosos e, às vezes, radicais...
Roberto Drummond entrou em minha vida às prestações, bem depois.
Ele assinava uma coluna no Estado de Minas e fazia crônica esportiva com muita poesia. Chamava Reinaldo de Baby Craque. O ponta-esquerda Joãozinho era o bailarino da Toca.
Os craques dos quais não gostava ou não aceitava eram chamados de tigres de papel.
Nunca escondeu de ninguém que era atleticano. É dele a célebre frase adotada por toda a massa carijó:

"Se houver uma camisa preta-e branca pendurada num varal durante uma tempestade, o atleticano torce contra o vento".

Roberto escrevia com maestria sobre outras coisas, também.
No Segundo Caderno do jornal, transformava Belo Horizonte na Cartagena de Garcia Marquez, na Pamplona de Ernest Hemingway.
Era ali, na fonte que borbulhava à sombra da Serra do Curral, que ele bebia a água da inspiração. Melhor do que nenhum outro escritor da capital mineira desvendou com o toque de sua pena a alma do belorizontino.
Tornava possível o amor da moça da Avenida Barbacena com o rapaz que veio do interior e foi morar em Betim.
Conversava com uma cotovia que lhe dava conselhos de cima dos postes da Rua Rio Grande do Norte.
Promovia duelos de adversários políticos ao pôr-do-sol em plena Praça do Papa, e marchava pela Afonso Pena com pobres miseráveis pedindo terra, trabalho e pão.
Li seu primeiro livro quando já vivia nos Estados Unidos e tornei-me um ardoroso fã.
Em 1988, quando fundei o Brazilian Voice, resenhei um trabalho seu, que acabara de ser lançado no Brasil.
Alguém de passagem por aqui levou-lhe o jornal e, algum tempo depois, recebi um recado dele: queria me encontrar quando fosse a BH.
Um mês depois estávamos no Dona Lucinha comendo feijão tropeiro e bebendo umas e outras. Foi impactante aquele primeiro encontro.
Passamos a nos encontrar sempre, todas as vezes que eu ia ao Brasil. E ficávamos horas a fio conversando sobre tudo e nada nos bares da capital.
Dono de uma generosidade ímpar tomava-me debaixo de suas asas fazendo-me sentir como se fosse um filho querido. O filho varão, que ele não teve.
Quando retornei aos Estados Unidos, ele já era colaborador do Brazilian Voice.
Nunca levou um tostão por suas crônicas, e dizia que um dia cobraria um dólar por cada um de seus inventos publicados no BV. Mas que isto só aconteceria depois que ele ganhasse o Nobel de literatura.
Se eu não cheguei a entrar para a sua família, ele foi, certamente, o primeiro grande nome a entrar para a família Brazilian Voice. E a honraria maior veio com a publicação do livro Hilda Furacão, seu grande sucesso literário, que ele dedicou, junto com outras pessoas, também a mim. Meu querido amigo, cujos títulos de livros tinham uma obcessão pela morte ("Quando Fui Morto em Cuba", "O dia em que Ernest Hemingway Morreu Crucificado", "A Morte de Dj em Paris" e "Os Mortos Não Dançam Valsa") me ensinou muito sobre imortalidades e o avesso de certos mistérios do ofício de viver.
Aprendi com ele que as coisas verdadeiras não morrem jamais.
Não morre o amor.
Não morre a amizade.
Não morre a gratidão.
Não morre a saudade.
Como que cumprindo uma sentença assinada por Deus, somos nós que morremos um pouquinho, a cada nascer de sol.
Morremos como morre a juventude, os arroubos desta e tudo o que for apenas paixão.

.

15 comments:

Carlos Renatto said...

Obrigado pela visita, Roberto.

Te espero lá outras vezes e virei por aqui sempre também...

Abraços!!!

Primeira Pessoa said...

Pode deixar que apreço pra um cafezinho, Carlos Renato.
e pra um pão com linguiça. afinal, Formiga tem o melhor pão com linguiça de beira de estrada de toda a minas gerais.
eu sou fã.
abração,
Roberto.

Lara Amaral said...

Vc me lembra Raulzito na música "Eu nasci há dez mil anos atrás", hehe, é que vc sempre tem uma história interessante para contar sobre alguém tbm interessante que passou pela sua vida. Ou posso te comparar tbm ao "Forest Gump, o contador de histórias", hehe... Muito legal o jeito que vc escreve.

Seus textos são deliciosos de ler.

Beijos e um ótimo início de ano!

Primeira Pessoa said...

Pois é, Lara... rs
Forrest Gump foi golpe baixo... acertou a genviva...rs
Raulzito? esse viveu dez mil em 50.
no meu caso, já nasci velho... era adolescente e já era um ex-jovem brasileiro jogado no mundo...
e isso de contar causos é coisa de mineiro... já escreveram até teses sobre isso... essa coisa de, na ausência de praia, irmos pro bar prosear.
eu escrevo como falo. diletante da palavra, sou cria das ruas e de uma solidão povoada de pessoas muito interessantes ao longo da vida...
e, sim, é muito bom prosear com você.

abraço novinho em folha, versão 2010, do
roberto.

Lara Amaral said...

hehe... sei bem como é esse lance de já nascer velho. Uma amiga poetisa disse uma vez que eu era precoce. Eu disse a ela que não, pois mesmo com 23 anos, a cada ano envelheço 2, no mínimo... rs.

Gostei da resposta.

Beijos!

Primeira Pessoa said...

Lara,
se a sabedoria da velhice viesse desacompanhada da artrite (e de outras ites e oses), envelhecer precocemente até que nem seria um mau negócio.
ser precoce no início da vida é, incontestavelmente, bom.
mas da metade pra frente... sei não... rs
Abração do
Roberto.

líria porto said...

e não falaste de "o cheiro de deus", que roberto drummond, iluminadamente, escreveu! comprei tantos livros e presenteei os amigos que um dia disse ao roberto - eu devia receber comissão!! risos

a catula estudava no "barão do rio branco", escola das minhas quatro filhas, eu moro perto da rua do ouro, adoro o mercado central - então, enquanto lia "o cheiro de deus" perambulava pelas linhas do livro e como vó micaela farejava os cheiros!!

besos

Primeira Pessoa said...

Putz, Líria...
é um grande livro. Omiti, peço perdão (a você e a ele).
acompanhei de pertinho a fazeção desse livro. acho que ja te contei essa estória.

Ah, Líria, essa noite cheguei a sonhar com o mercado central.
eu tava comendo carambola cortada em fatias e mastigava estrelas...

podemos almoçar no casa cheia quando eu for aí. o que diz? um luxo. o garçom sempre me consegue uma mesa (subornar o garçom é legal em 20 estados do brasil e minas é um deles, relaxa!).
e a comida é boa demais.

já comeu mineirinho valente? (sem trocadilhos, por favor...rs) eu já!
e é quase tão bom quanto pão com linguiça:

- sal, pimenta moída, alho, cebola ralada... o quanto baste...
- tomate cortado bem pequitim
- canjiquinha.
- "fiote" de espinafre (aquelas folhas bem novinhas)
- costelinha defumada.
- calabresa defumada.
- queijo canastra derretendo (estica e puxa... manja?).
- 3 pimentas biquinho para decorar.
- um punhadim de cheiro verde

cozinha a canjiquinha com as carnes... põe o espinafre e o queijo no final. decora com as três "biquim".

e uma pinguinha de salina, no antes. uma original estupendamente gelada no durante. ou duas. ou três.

no depois a gente desce pra um café, em pé, numa daquelas galerias.

e ainda te apresento pessoas que amo. ce vai gostar..

ô, o mercado central é a disneylândia dos jecas.
e eu amo aquilo ali.

bora lá?

R.

líria porto said...

topo!!! aqui em araxá já exorbitei, minha balança não me aguenta, mas seja o que deus quiser! sou gorda, mas sou feliz... risos

chego em bh antes do fim da semana!

besos

Primeira Pessoa said...

araxá é bão de doces, né?
ah, nem me fale em balança.
meu 2010 - o cumprimento das resoluções de final de ano - começam amanhã.

o mercado central ficará pequeno pra nossa entourage.

mineirinho valente, ou tudo! rs

Iara Maria Carvalho said...

"Desarnei" meio tarde pras leituras duradouras... depois que li Cem Anos de Solidão em 4 dias é que fiquei na instiga por romances e quetais.

A propósito disso, só tô conseguindo ler agora o Grande Sertão...isso depois de ter sido bem deseducada na palavra por Manoel de Barros, que vejo, agora, ser mesmo o Rosa da poesia...

Próxima missão: ler Roberto Drummond...ainda não conheço nada, credita, Roberto?

Beijos...

Primeira Pessoa said...

Iara,
cê acredita que o livro Hilda Furacão, de Roberto Drummond, é dedicado a mim?
juro de pés juntinhos.

Acompanhei a fazeção, bem de pertinho, de O Cheiro de Deus, que a Líria Porto diz ser o Cem Anos de Solidào brasileiro. Hilda Furacão nasceu no meio deste processo. Foi escrito em menos de dois meses e sob uma pressão dos diabos.
Roberto era um pai pra mim. E nossas trajetórias se misturaram muito (mentor e pupilo).
Nos momentos mais líricos, meu jeito de escrever crônicas lembra um pouco as coisas dele. Ele era profundo. Eu, raso, raso...
Mas eu carrego uma coisa de humor que ele não tinha, fruto de eu gostar de boteco e ter amigos de tudo quanto é marca e feitio.
O outro Roberto era mais fechado, mais seletivo.
O meu livro favorito dele (rs) é A morte de Dj em Paris. Um trem doido demais.

Sinto imensas saudades dele.

Iara Maria Carvalho said...

Se é o Cem anos de Solidão brasileiro, fico ainda mais instigada a ler O Cheiro de Deus.

Ainda mais depois de uma descrição tão emocionada quanto essa sua...

...

Primeira Pessoa said...

Leia, sim, Iara... é recomendação da Líria Porto.
Eu sou apaixonado por A Morte de DJ em Paris...
na época, estava adiante do seu tempo... capa de elifas andreatto... um show...

sou suspeito de falar de RD...

José Carlos Brandão said...

Gostei especialmente desta crônica. Porque gosto de textos de formação. E porque é muito boa. E porque me traz a lembrança de Roberto Drummond. (Eu não conheci Roberto Drummond, não, mas nutria um afeto distante por ele. Acompanhei com interesse, torcendo, a sua carreira. Do que gostei mais dele foi do Cheiro de Deus.)
Um grande abraço.