Friday, January 22, 2010

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Botequim, doce botequim!

Botequim, meu doce botequim. É assim que quem é do ramo se refere ao bom e velho boteco. E esse que é do ramo, aprecia e valoriza o lugar onde se afogam quase todas as mágoas da existência, num companheiríssimo copo de cerveja.
É lá que as feridas da vida se fecham como num passe de mágica, e as dores se revelam e abrem para o mundo, como um livro de cal e poesia.
No boteco, alegria e melancolia são servidas e bebidas no mesmo copo.
Boteco cura e cicatriza.
Meu primeiro boteco foi o do Baixinho, em São Raimundo.
Eu era adolescente, frequentava escondido do meu pai.
Lá eu jogava sinuca, futebol de mesa, dama, palitinho, truco e pif-paf. Tinha tudo pra me tornar um malandro. O medo do meu velho tratou de me "equilibrar".
Comecei a beber cedo. Obviamente, às escondidas.
No Baixinho tinha uma batata recheada com queijo e mortadela, famosa no bairro inteiro.
A pinga era de Coroaci e o limão do quintal.
De bônus, o banheiro era limpinho.
Boteco com banheiro limpo é tudo de bom.
Conheço indivíduos que, quando estão no boteco, transformam-se em outra pessoa.
Alguns viram filósofos, formulam teses esdrúxulas, salvam o mundo do diabo.
Tem também os que dão palpite na política, os que se irmanam com as fofoqueiros do bairro, os técnicos de futebol e aqueles mais saidinhos, que parecem beber cerveja com testosterona.
Tem botequeiro que quando toma umas, constrói prédios.
Outro tipo de botequeiro "compra fazenda", planta milhões de pés de café e vende gado...
Existem botequeiros sisudos, que após o primeiro gole destravam a língua e o coração.
Existem ainda os chorões, os que gostam de batucar nas mesa cantando sambas e os piadistas. São quase todos adoráveis.
Abomináveis, só os violentos, aqueles que enchem a cara e fazem tempestade em copo de água. Ou de cachaça…
Assim como a palavra saudade, o boteco é um negócio estritamente brasileiro.
Esqueçam os pubs ingleses, as bodegas mexicanas, as tascas ibéricas e todos os congêneres do planeta.
O boteco do Brasil é o que há.
De meus primeiros tempos, os que mais me marcaram, em Valadares, foram os do Ari, o do Maforte e o do Pedrão.
Ao Ari, íamos atrás da carne de rã, do cascudo com molho de alho e da Antárctica fabricada em Pirapora.
Os entendidos defendiam a tese de que era superior às produzidas nas outras cervejarias do país. O segredo, diziam, estava na água do Rio São Francisco, usada em sua fabricação.
No Maforte as carnes de caça faziam enorme sucesso. Tinha, ainda, lambarizinho passado no fubá e frito, crocante; traíra sem espinho, a dobradinha com feijão branco, farofa de testículo de boi, moela de frango ao molho de tomate (acompanhada de pão murcho),e pé de porco no caldo de feijão preto. De mais exótico, uma improvável moqueca de cobra, que nunca experimentei.
No Pedrão, íamos mais para ver as moças que passavam em frente. E beber a tal Antárctica de Pirapora.
Boteco é o habitat natural de poetas e escritores. De jornalistas e outros sonhadores. Vamos longe atrás de um bom boteco. E fazemos a propaganda depois.
Numa viagem a Vitória da Conquista, no início dos anos 80, conheci o Robertão Bar, boteco cujo cardápio era rabiscado no teto de telhas de amianto e inspirado em celebridades da época.
Bruna Lombardi era um coquetel de suco de abacaxi, vodka e leite de coco.
Sônia Braga levava cachaça, polpa de caju esmagada e um ingrediente secreto.
Vera Fisher, linda, leve e loura, era feita de rum nacional, suco de laranja, um toque de licor de hortelã e era adornada por uma flor de visgo amarela, que Robertão mandava buscar nos jardins da vizinhança.
Entre as comidinhas, tinha o caldo de feijão Incrível Hulk, a buchada à Rita Cadilac (que naqueles tempos estava longe de ser um "bucho") e a Rabada da Gretchen.
Ao final das opções, lia-se:
"O Ministério da Saúde adverte: ler o cardápio do Robertão sem beber, pode causar torcicolo e tontura".
Em Belo Horizonte, a capital mundial do boteco, a variedade chega a espantar.
Tem o Bar do Bolão, aberto 24 horas, reduto de músicos e intelectuais, que é muito legal. O rochedão (mexidão) e o macarrão ao sugo são antológicos.
Nas mesas do Bolão, os garotos do Sepultura, do Skank e do Jota Quest, amarraram parcerias e criaram o embrião de suas bandas. Tudo isto, apesar da cartolina encardida na parede, determinando:
"É proibido batucar na mesa e tocar violão".
Destaco também o Bar do Caixote (as mesas e cadeiras são caixas de cervejas vazias, desde o tempo em que os engradados eram caixotes de madeira) e o Bar Sem Porta.
É isto mesmo.
Esse, por motivos óbvios, não fecha nunca.

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18 comments:

Lídia Borges said...

Ora, aqui está um texto enriquecedor.
Estes lugares de convívio são importantes, favorecem a camardagem e propiciam o aparecimento de novas amizades a avaliar pelo que aqui é narrado.
Realço a forma como é descrita esta "viagem" por bares, uns e outros, cada qual com as suas especificidades. Gostei dos nomes das bebidas. Conheço alguns!

Obrigada pelas palavras benévolas deixadas nas minhas searas.

L.B.

Primeira Pessoa said...

lídia,
não fui borges por um triz. minha mãe é borges (rs). acabei com um destes nomes duplos (que não conto nem por decreto)... destes de cantores de churrascaria... e um sobrenome.
poupei minhas filhas desse desassossego.

falando em nome de bebidas, na minha terra existem nomes de cachaça que são uma maravilha: decisão (vou tomar uma decisão importante!...rs), providência, atitude, amansa corno, leite de égua, coice de mula... e por aí vai... a lista é extensa.

e, sim... os bares... ah, os bares...
quase do tamanho da nossa sede de respostas.

abração do
roberto.

Paulo Jorge Dumaresq said...

O boteco é patrimônio nacional.
Mais uma bela crônica das suas reminiscências mineiras.
Deu vontade de conhecer BH.
Ainda não tive o prazer.
Roberto, aquele abraço.

líria porto said...

adoro boteco, e nem é para beber, é para respirar difícil mesmo... risos

tonico morreu
líria porto

pedrinho
completamente bêbado
beijou-lhe a testa e lhe disse
: vai meu irmão
o céu é perto
mas fala com o chefe
só irei para cima
se nalguma esquina
tiver boteco

*


besos

líria porto said...

garimpo
líria porto

esta procura tem um nome insanidade
passei da idade de tentar fazer sonetos
eu só consigo descrever cinzas e pretos
acho que o verso não alcança claridade

pelas gavetas prateleiras escondidos
ainda agarro pelo rabo alguns cometas
quero as estrelas não encontro suas tetas
sinto a fissura dos pequenos desvalidos

a minha escrita sempre foi penosa esgrima
desde menina que não tenho paradeiro
eu caço sapo com bodoque o dia inteiro
nesta esperança de catar melhores rimas

sou das beiradas dos botecos das esquinas
a salvação foi ter nascido aqui em minas

*


besosssss

Primeira Pessoa said...

Paulo Poeta,
se você for a BH será recebido com o carinho que os mineiros recebem seus visitantes.
no seu coração litorâneo vai surgir um espaço pra uma montanha.
e você nunca mais parará de sentir banzo.
um banzo bom.

escreve aí.
abração do
roberto.

Primeira Pessoa said...

líria,
cê tem poema pra tudo.
nunca vi um trem desses, meu jesuscristinho.
e eu vou gostando cada vez mais.

cê sabe que eu sou seu fã, né?

beijão do
roberto.

Primeira Pessoa said...

ah, sim, tava me esquecendo... só pra fechar.
eu não teria nascido noutro lugar que não fosse minas gerais.

teria nascido anjo.
natimorto, ali, no ninho.

beijão dele,
o R.

Anonymous said...

Roberto:
adorei ter lido sobre os "seus botequins", quase que consigo ver os cafés da minha cidade.
Obrigada pos esta nostalgia.
Abraço!

Primeira Pessoa said...

cafés, tascas, botequins...
laura, esse é o reduto dos que exercitam a sensibilidade, quero crer.
aí no seu país não é doferente, tenho certeza.
um belo final de semana pra voc6e.

R.

Unknown said...

Pô cara, tua crônica me deu sede. Vou lá no meu boteco, o Flamboyant, isso mesmo e o nome é por causa da árvore, enorme, que resiste entre nós. Vou fazer um brinde prá nós, lá. Abraço.

Primeira Pessoa said...

assis,
os flanboyants estão sangrando, nesssas tardes tão azuis...
jorge amado escreveu.
alceu valença "copiou".

eu repeti.
você bebeu.

abraço, meu amigo.

te mando um emauil com contato pra mandar o livro.

abração do
roberto.

cirandeira said...

Sempre soube que BH é famosa por seus botecos e
seus frequentadores especiais, mas depois de ler essa crônica tão gostosa, fiquei morrendo de vontade de conhecê-los. Me deu até água na
boca, e, uma sede danada! Conheço BH muito superficialmente...
Um bom final de semana

Primeira Pessoa said...

cirandeira,
modéstia às favas: os butecos de bh são geniais. eles promovem o concurso anual da comida de buteco (pesquisa no "guga") que é uma espécie de copa do mundo da butecagem.

a cidade abraçou o brojeto e, durante um mês, a população faz uma espécie de via-sacra estílico-gastronômica, entre todos os bares concorrentes.

é um trem do outro mundo.

se cê for, tenho certeza de que vai curtir.

abração do
roberto.

John Doe said...

dois posts depois e ainda sob o efeito das risadas, e eu que achei que era impossivel achar um bom cronista na internet... muito bom mesmo

Primeira Pessoa said...

john,
sinto falta de blogs com cronicas na internet. e constatei que existem mais blogs de poesia, o que tambem me agrada muitíssimo.
que bom que voce está à bordo.
essa casa é sua.
abração do
roberto.

Anonymous said...

R.
Meus melhores amigos, amores, desafetos, minhas melhores descobertas, cantorias, alegrias, gargalhadas, desilusões e encantamentos aconteceram ao redor de uma mesa de Boteco (que eu só consigo pronunciar Buteco com U mesmo...).
Buteco é lugar santo.
Vai ver que vem daí aquele respeitoso e fundamental golinho "prussanto"...
Saudades de butecar com você.
Bj
Diubs

Primeira Pessoa said...

ei, Diubs...
saudade de butecar com você, também.
e, qualquer dia rola, eu sei.
saudades, amiga querida.
beijão do
r.